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IECLB - Consolo e caminhos em tempos de pandemia

Questão: Como levar/buscar a mensagem de consolo e que caminhos/mapas a Igreja deve caminhar/seguir/abrir em tempos de pandemia (COVID-19). 

 

"É verdade que, para muitos de nós que vivemos grande parte de nossas vidas longe de casa, esse confinamento repentino pode representar um terrível embaraço. Mas eu acho que pode ser também uma oportunidade para refletir, para imaginar o que em nossa vida é frívolo ou inútil." Edgar Morin. 


Em primeiro lugar preciso expressar gratidão pelo convite que aquece meu coração vindo do pastor Marcos Bechert, da bela Estrela, nas terras gaúchas. Gratidão ao pastor e biblista Milton Schwantes, meu dileto mestre da Bíblia e sempre um amigo fiel (compartilhávamos a Eucaristia quando juntos celebrávamos! Rezamos tanto por ele nas rádios católicas), a inolvidável pastora Rosa Marga Rothe, de Belém do Pará (naqueles memoráveis encontros dos Centros de Direitos Humanos nos anos 1980). Gratidão ao meu Opa materno (mein Grossvater Karl Gottfried Müller, nascido em Heideloh, Leipzig, Alemanha, batizado luterano). Gratidão ao pastor Walter Altman pela orientação segura na caminhada ecumênica. Aos amigos Rolf Schunemann e Hermann Wille quando do falecimento de meu primo Rolf Müller, luterano. Abraço virtual carinhoso às pastoras Beta Lieven, Romi Marcia Bencke, Haidi Jarschel e Neuza Tetzner, por ver nelas as novas “Catarinas” de hoje. Aliás, hoje é Santa Catarina de Sienna. Aquela leiga semianalfabeta, hereticamente firme, mística, visionária, que enfrentou bispos, cardeais e papas, uma precursora do casal Lutero e Catarina. Hoje é doutora da Igreja de confissão romana. A lista da minha família luterana ainda é imensa: Geraldo Graf, Carlos Dreher, Lusmarina Garcia e Reinoldo Glück Neumann. Viele Danke. 

Perguntas que me fiz ao receber o convite do pastor Bechert. Permitam-me compartilhar nesse diálogo de um católico que cultiva um profundo amor e respeito pela Igreja Evangélica de confissão luterana:
1.    Quarentena por quê? Uma pandemia de Coronavírus - COVID-19, a morte real e aleatória de 215 mil falecidos, a contaminação de 3 milhões de seres humanos, a necessidade de esmagar a curva, o pentecostalismo falsificador versus a palavra abalizada dos médicos, sobretudo dos sanitaristas e epidemiologistas (Esculápio, Panaceia e Higia). Sabemos que é preciso distância entre as pessoas, uso de máscaras no rosto, lavar as mãos, proteger idosos, mudar hábitos e modos de viver (festa, teatro, igrejas, shopping, escolas, praia, passeios, futebol, etc), mas isso tudo incomoda profundamente. Quarentena para que? Salvar vidas, para recolher-se, ouvir os solitários e idosos, redescobrir a fragilidade pessoal e humana, negar a onipotência do Mercado, contemplar os outros seres vivos e o céu exuberante refeito de ozonio, aprender novas coisas – esporte, culinária, tarefas primárias, arrumar a casa, pisar no freio, cuidar dos pobres, inverter as prioridades, dar aulas remotas, fazer cultos remotos, celebrar páscoa remota, desmascarar as demagogias governamentais, descobrir o tesouro da fé. Se Lutero é um homem que vive o cambio de tempo e encarna ele próprio um paradigma será preciso da audácia luterana recriada. Ecclesia semper reformanda in caput et in membris. Qual quarentena? Certamente são múltiplas e personalizadas. As quarentenas de ricos ou a das periferias pobres e subalternas. A urbana ou a rural? A dos indígenas ou da elite financeira de Londres? A de Nova Iorque ou a da Nova Zelândia? As quarentenas que parecem casulo que se abra para a metamorfose (ressurreição) ou aquela dos funerais sem rito e sem rosto (a morte insepulta, plena de dor e angústia: traumática e cruel).

2.    A memória da vida luterana de 500 anos traz luzes, certamente, para nosso tempo de sofrimento no que parece seguir quaresmal ainda dentro da Páscoa. Começo pensando a experiência na torre (Turmerlebnis) em 1513 ou 1515. Lutero curva-se sobre si: “Se devemos viver como justos a partir da fé e se a justiça de Deus conduz à salvação todo aquele que crê, então a salvação não é mérito nosso, mas é a misericórdia de Deus. Assim, meu espírito recobrou o ânimo, pois a justiça de Deus consiste em que somos justificados e salvos por meio de Cristo”.

3.    A detenção preventiva em Wartburg: Lutero é detido e vive um tempo da quarentena traduzindo o Evangelho, com zelo e preocupação pastoral em sua inovadora hermenêutica contextual. Os evangelhos são publicados em setembro de 1522. A Bíblia completa é impressa em 1534. Serão publicados 500 mil exemplares em três décadas. Eu mesmo ganhei uma versão publicada em Köln datada de 1885. Ele busca ouvir o povo. “Pergunte à mãe em casa, às crianças na rua, ao popular nas feiras, e ouçam como falam e traduzam a Bíblia do mesmo jeito”. Obras seletas, vol. 8, p. 211/212. Quer que o alemão escrito na Bíblia seja o alemão de verdade e não um latim disfarçado de alemão. Ouvir o povo nos mercados.  Lutero curva-se diante da Palavra. 

4.    O tempo do consolo brota de outro relógio: A tensão entre o tempo de Deus e as horas humanas. Assumo a tradução e, sobretudo a apresentação gráfica de Lutero do livro do Eclesiastes (Der Prediger Salomo cap. 3. São quatorze pares de oposições. Sein zum Tod. Sein zum Leben. (me recorda Martin Heidegger e Erich Fromm). Sobre o amor à vida pelos paradoxos. O livro do Cohelet ensina: "Ein Jegliches hat seine Zeit, und alles Vorhaben unter dem Himmel hat seine Stunde."  Humano curva-se diante de Deus.

5.    A ação terapêutica essencial ofertada por Deus em Cristo é o perdão dos pecados que nos chega pela fé e pela graça. A experiência do perdão é fundamental para superar recalques, depressões, medos e angústias paralisantes. Há muito conflito afetivo ocorrendo nas famílias. Estar em casa é paraíso e inferno simultaneamente. Gente encarcerada manifesta o melhor e o pior de suas sombras interiores. Aqui talvez Lutero nos ofereça orações e hinos sanitários. A beleza e a arte sempre são alimento da alma. Faz pensar na frase de Dostoievski: a beleza salvará o mundo! Eis o belo poema de Lutero: “Vê Senhor que sou um vaso... enche... fortalece... aquece-me... de ti posso receber...”. Lemos também no hinário luterano. Das grosse Cantionale, Darmstadt 1687. Erns C. Homburg (1605-1681): “Jesu, meines Lebens Leben, der du dich für mich gegeben. Jesu, meines Todes Tod, in die tiefste Seelennot” - Jesus, vida de minha vida, dada por Ti para mim, Jesus, morte de minha morte, na mais profunda necessidade de minha alma. A alma curva-se diante do Belo. 

6.    A memória da Igreja Confessante em Dietrich Bonhoeffer. Comunidade de fieis na base do sacerdócio comum. É impactante a crítica contra o que ele denomina graça barata. É preciso pensar aquela única graça preciosa. E nela, que tipo de Igreja para que os tempos atuais e, sobretudo no pós-pandemia? Que rosto de Cristo propor e desvelar como Igreja-sinal? Qual será a normalidade? Qual a novidade? Qual o rompimento e superação? Amnésia ou aprendizado. Tempos anormais exigem uma Igreja subversiva (sic). Igreja normopata é sempre doentia. Um bispo católico alemão eleito em 21 de janeiro de 2020 para a diocese de Augsburg, Mons. Bertram Meier deveria ter sido sagrado em março de 2020 e não o pode por conta da pandemia. Disse ele ao ser entrevistado em sua quarentena: “A Igreja não deve continuar como antes. Não é para recuperar o atraso. Sim, é preciso continuar os cuidados pastorais habituais e o já trilhado. E, ir aos novos lugares. Confiança total em Deus”. Lembrou-me Lutero: sacramentos são promessas de Cristo e sinais da fé viva. Ultrapassam os ritos e os signos. O pecado curva-se diante da Graça.

7.    Calar-se e buscar o silêncio fecundo. Em tempos de pandemia, os cristãos devem aprender do silêncio. Não é preciso ostentar símbolos pelas ruas ou pela internet, tal qual feiticeiro do sagrado ou vendedor de salvação demagógica. É preciso mergulhar no enigma e contemplar a dor das pessoas. Viver a cruz de Cristo. Até mesmo de forma invisível. Tal foi uma fala de Bonhoeffer, ao dizer que o visível deve permanecer invisível, e que o visível ou extraordinário não deve ser visto. A oração é absolutamente secreta. Abandonar-se a Deus ao permitir que Ele nos conduza por seu Amor misericordioso na presença atuante de anjos guardiães (médicos, enfermeiras, lixeiros, catadores, motoristas de ônibus e tantas mais). Assumir a tarefa humana de lutar contra as várias expressões do mal no mundo e dentro de nós próprios. Como disse Albert Camus aos frades dominicanos de Latour-Mauboug: “Se vós não nos ajudais, quem poderia nos ajudar neste mundo?”. O homem revoltado, chave da literatura de Camus, não deveria justificar uma atitude covarde das igrejas. É preciso manter a fé em combate audaz. Fé do fraco que sabe da força do Deus Crucificado. Ficar ao lado dos humilhados, dos vulneráveis e dos subalternos supõe que estejamos munidos de uma louca generosidade ou de um estranho amor. Camus chama isso de fecundidade rebelde. Ainda que aparentemente impotente frente ao mal, Deus está ao lado de quem sofre. A Bíblia tem um nome hebraico para essa presença: Miguel (Quem como Deus!). Um arcanjo invisível que está sempre ao nosso lado na hora do combate. Essa rebeldia seja nossa razão de existir. Como disse Heráclito: “Se não esperamos o inesperado, não o reconheceremos!” O moravo-luterano Sören Kierkegaard exclama: “Não nos permita jamais esquecer que Tu falas mesmo quando Tu estás calado; dê-nos também essa confiança, quando esperando Tua vinda, saibamos que Tu te calas por amor como falas por amor. Portanto, quer Tu silencies ou quer fales, Tu és sempre o mesmo Pai, o mesmo coração paternal, quer nos guies por Tua voz ou nos faça crescer por Teu silêncio”. Calamo-nos, reverentes, diante do Deus absconditus. 

8.    Em anotação de Lutero, lemos: “A Virgílio, com seus poemas de pastores e camponeses, ninguém poderia compreender se não tivesse sido pastor por cinco anos. A Cícero, com suas cartas, eu imagino, ninguém poderá compreender se não atuar em vinte anos inserido em Estado excelente. A Sagrada Escritura, que ninguém pense tê-la compreendido o suficiente, se não governou as igrejas durante cem anos com os profetas. Não penses em colocar a mão na divina Eneida, sem antes, em profunda adoração, seguir suas pegadas. Mendigos somos. É verdade! (M. Luter, WA Tischreden 5, p. 168; WA XLVIII p. 241 in. W. v. Loewenich, Martin Luther, Der Mann und das WErk, Munchen, 1982)”.  Reconhecemos nossa pequenez. 

9.    Graça não é algo, coisa, modo, objeto nem uma qualidade ou habitus, mas é a clemência ativa e pessoal de Deus por obra do Espírito do Cristo Salvador. Graça é um encontro pessoal e comunitário. Graça é viver em Deus. Por Cristo, com Cristo e em Cristo. Experimentamos sua vida no meio de Deus. Igreja que se encontra na comunhão fraterna da Palavra viva. A IECLB de amanhã só poderá ser aquela que sempre deveria existir: Igreja da Graça e da fé. Gratuitamente serena e crucificada. Vivendo a Theologia crucis de modo fecundo e paradoxal. “No Cristo crucificado é que estão a verdadeira teologia e o verdadeiro conhecimento de Deus.” Precisa-se uma igreja que não se sinta segura e saciada pelo poder político ou sagrado. Como escreve Bonhoeffer: “A cruz é a compaixão com Cristo, tal como se dá no discipulado, está de fato sob a cruz (D. Bonhoeffer, Discipulado, São Paulo: Mundo cristão, 2016, p. 64)”. Confiemos e fidelizemos as vidas. Não sejamos estúpidos, diz Paulo Apóstolo. Nossa liberdade vem de Jesus Cristo (Gl 2,4).

Resumo: Assumir a quarentena. Reavaliar a “torre” e a “detenção”. Repensar os tempos e as frivolidades. Reencontrar Jesus pessoalmente. Experimentar a graça, a beleza, a música e o enigma de Deus como pedintes ou mendigos. Assumir a cruz como ato solidário e radicalmente humano.

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