A Bíblia - Tradução e recepção | Editorial | Ciberteologia - Revista de Teologia e Cultura

EDITORIAL

Paulinas Editora acaba de oferecer ao público de língua portuguesa uma tradução original da Bíblia. Toda tradução pretende, evidentemente, ser original; do contrário não teria razão de existir, ainda mais, pelo gigantesco e minucioso trabalho que exige todo o processo de produção de um conjunto de livros do mundo antigo que pretende falar com clareza ao mundo atual. Cada tradução nasce de um projeto que pretende concretizar determinados objetivos mais científicos ou mais pastorais, ou, ainda, a meta mais desafiante de conjugar os dois aspectos. A tradução da Bíblia é, nesse sentido, um ato de fé e um ato de razão que se conjugam em um determinado ambiente social e eclesial. Toda tradução ensina, por si mesma, que os textos bíblicos não podem constituir um sistema fechado e definitivo que dispense novas interpretações, mas, ao contrário, é sempre um sistema aberto que advém de uma fonte viva que carrega em seu cerne a força renovadora do Espírito que sopra onde quer e conduz o povo de Deus à verdade, conforme o credo cristão. Assim, a palavra vai revelando seu sentido, na medida em que vai sendo interpretada e traduzida.

Nesse sentido, pode-se falar em dois dinamismos básicos que exigem a tarefa da tradução. Por um lado, a história da Bíblia narra a tendência espontânea e necessária de traduções, em função da missão evangelizadora da Igreja que se adapta em cada contexto histórico, dentro de condições linguísticas que se impõem à sua comunicação. Por outro, a evolução das ciências dedicadas à cultura humana constrói novas teorias e novos métodos que desvelam as próprias construções culturais e lhes dão novos significados. O leitor tem em mãos A Bíblia e poderá contar não somente com uma primorosa versão dos textos do Cânon católico, como também com o aparato técnico oferecido pelas Introduções e Notas que acompanham passo a passo cada livro. A nova versão expressa a competência e a dedicação dos especialistas nacionais e internacionais, de seus coordenadores e da equipe técnica e, de modo decisivo, é fruto do entusiasmo e do apoio das Irmãs Paulinas.

Ciberteologia acolhe com alegria esse trabalho agora concluído e parabeniza a todos os sujeitos envolvidos pelo trabalho competente e dedicado. O resultado de 15 anos de trabalho de 22 tradutores e 7 revisores exegéticos, dentre os quais 5 mulheres e 4 de confissão protestante, deve ser celebrado como ponto de chegada, mas, antes de tudo, como um ponto de partida. Como toda obra escrita, a Bíblia direciona-se a um público que deverá acolhê-la e adotá-la, tanto na vida espiritual dos fiéis quanto nas rotinas pastorais das comunidades. Trata-se da fase de recepção que agora se coloca em marcha nas comunidades católicas e cristãs e, por certo, também nas comunidades acadêmicas. Ciberteologia pretende participar de modo ativo e imediato nessa recepção e, para tanto, conta com a contribuição de alguns dos autores do projeto que registram no presente número a memória, a identidade e os desafios dessa empreitada carregada de fé e de competência científica. O ato de traduzir faz parte dos processos de transmissão cultural e de comunicação humana. O animal que fala está sempre envolvido em situações de diálogo que implicam receber, compreender e acolher mensagens, ainda que essas se refiram a situações rotineiras e simples das relações humanas. E a longa história do progresso civilizacional revela a complexificação desse processo, que se acentua com a consolidação da cultura escrita.

A compreensão e a transmissão de um texto envolvem relações entre sujeitos leitores e mensagem codificada, entre subjetividade e objetividade. Esse ato desencadeia uma circularidade interpretativa – círculo hermenêutico − que não pode evitar conflitos de interpretação e deformações interpretativas e, sem dúvidas, exige técnicas de interpretação que facilitem a recepção mais correta e honesta do conteúdo objetivo codificado no texto. E dentre os textos, os que compõem a Bíblia posicionam-se como aqueles que mais se mostram sujeitos a conflitos hermenêuticos e, ao mesmo tempo, a buscas de regras que contribuam com a compreensão do sentido objetivo da mensagem. A longa história da interpretação bíblica oferece um retrato diversificado destas posturas, sabendo que a própria fixação dos cânones foi resultada de opções hermenêuticas que se impuseram em cada contexto histórico e doutrinal. Se é verdade que em cada cabeça uma sentença, em cada leitor um pressuposto de leitura. Os fiéis que leem um texto bíblico o fazem de modo interessado e, por conseguinte, de modo precavido, julgando entendê-lo em função de suas expectativas e necessidades. As traduções modernas, se bem utilizadas, antes, se bem apreendidas, têm uma função pedagógica que contribui com a superação das posturas devocionais e fundamentalistas. Em tempos de política teocrática em que a coisa íntima do religioso se confunde com a coisa pública, a Bíblia não ficou de fora. Tramitou pela Câmara dos Deputados um projeto que visou proibir “qualquer alteração ou adição aos textos da Bíblia Sagrada, composta pelo Antigo e Novo Testamento em seus capítulos ou versículos”. Não bastasse a ignorância legal da proposta nos termos da Constituicão Federal, a proposta nasce de uma completa ignorância sobre as muitas versões da Bíblia elaboradas no decorrer do tempo e da própria diversidade de cânones que ela comporta. A presente tradução chega neste momento como uma afronta crítica a esse propósito político fundamentalista. As ciências bíblicas constituem, com certeza, o antídoto mais eficaz contra esses arroubos religiosos autoritários.

A Bíblia Paulinas continua a escrever a história da interpretação bíblica no Ocidente, particularmente em língua portuguesa; acolhe a orientação conciliar que chama a atenção para a importância de se chegar ao significado dos textos, aqueles pretendidos por seus autores. A esse respeito ensina o Vaticano II: “Como Deus na Sagrada Escritura falou por meio de homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e aprouve a Deus manifestar por meio das palavras deles” (Dei Verbum, 12). Texto bíblico sem investigação pode servir a tudo o que deseja o leitor com seus pressupostos. Desvendar o que o autor do texto bíblico “realmente” quis dizer é uma tarefa sem fim que conta com o avanço das investigações científicas de ontem e de hoje. Esta tarefa de grande exigência técnica oferece a cada época elementos novos que permitem renovar as interpretações dos livros e de passagens bíblicas. Diferentemente do que pretendem as interpretações fundamentalistas, os textos bíblicos são codificações cujo sentido não se esgota em uma leitura ou em uma tradução definitiva. A reserva de sentido, de que falam os especialistas em hermenêutica, é inerente aos textos preservados e transmitidos no decorrer da história em diferentes temporalidades e espacialidades. Nesse sentido, as traduções são esforços para evidenciarem os sentidos em cada época, quando, então, a circularidade entre texto e contexto produz, de fato, novas possibilidades de compreensão e, por conseguinte, de interpretação e de aplicação de um texto já conhecido. As traduções abrem sempre novos significados para velhas codificações e interpretações consolidadas; são sempre interpretações feitas a partir de pressupostos assumidos pelos autores. A tradução da Bíblia na Igreja Católica tem sua história particular.

Observa-se, de fato, o esforço de tradução dos livros canônicos para os distintos contextos, adotando nos primórdios a versão Septuaginta do Antigo Testamento, sendo o primeiro grande trabalho a tradução dos originais gregos para o latim, no contexto do Império Romano. A Igreja que se traduz como um todo para a cultura latina popular traduz também as suas fontes escriturísticas. As primeiras traduções do grego para o latim chegaram ainda no final do segundo século. Essas se espalharam pelas Igrejas ocidentais e receberam o nome comum de Vetus latina (Velha latina), e vigoraram até a versão insigne de São Jerônimo na virada do século IV para o século V. A Igreja Católica latina preservou essa tradução, mais tarde chamada Vulgata, como oficial e “única” e, por conseguinte, chegou a proibir iniciativas de traduções para outras línguas descendentes corrompidas da língua imperial. Como ocorre nos processos de institucionalização, aquilo que havia sido esforço de adaptação e criação foi fixado como parâmetro único e norma a ser seguida. Na aurora do mundo moderno, essa unidade estável foi quebrada pela ousadia dos reformadores, sendo a tradução alemã feita por Lutero a empreitada mais bem-sucedida, tradução que expressa não somente a versão dos textos clássicos para o alemão, mas também um novo jeito de interpretar o próprio cristianismo naquele contexto de crise e renovação. E, desde então, no Ocidente cristão conviveram duas versões com dois cânones distintos. A partir dessas duas molduras e por dentro das muitas confissões cristãs, o conflito das interpretações bíblicas jamais foi superado e permanece como uma das questões atuais postas ao diálogo ecumênico. A volta aos originais, com as ferramentas avançadas dos estudos científicos aplicados à Bíblia, tem aberto caminhos novos para o diálogo ecumênico, como já experimentou o próprio processo conciliar ao tratar da questão sob a batuta do astuto biblista Agostinho Bea.

As experiências de tradução vêm ensinando a todos que a Bíblia não tem donos, mas é, antes de tudo, uma produção cultural de longa duração que se mistura com a formação da própria cultura ocidental. Os tradutores de ontem e de hoje contribuíram e contribuem com a construção da própria Bíblia, oferecendo chaves de leituras capazes de abrir o texto para a compreensão atual e oferecendo parâmetros que ajudam a distinguir o passado do presente e a evitar as transposições anacrônicas próprias das leituras fundamentalistas. As traduções são pontes entre o ontem e o hoje; pontes que permitem discernir o que já foi superado e o que permanece vivo com seus significados; pontes entre o sujeito que se aproxima do texto com suas pré-noções e dele pode extrair conteúdos, sem forçar os significados ali codificados. O Vaticano II ocupou-se da questão das traduções e abriu oficialmente a temporada de incontáveis projetos dessa natureza. Assim expressaram os padres conciliares: “Mas, visto que a Palavra de Deus deve estar sempre ao dispor de todos e em todos os tempos, a Igreja procura com solicitude maternal que se façam traduções esmeradas e fiéis nas várias línguas...” (Dei Verbum, 22).

O Concílio devolve a Bíblia para o povo de Deus e, para tanto, autoriza e incentiva as novas traduções nas mais diversas línguas. A Bíblia não é mais entendida como uma caixa de dogmas fixos e definitivos formulados pela Igreja, mas como um conjunto de livros que deve ser acolhido pela fé e pela razão, ao mesmo tempo que é instrumento de meditação e objeto de estudo. As atualizadas ferramentas das ciências bíblicas prestam um serviço inestimável aos tradutores na busca do que os hagiógrafos quiseram dizer ao escrever. Os padres conciliares entendem também que os trabalhos dos especialistas ajudam a amadurecer o “juízo da Igreja” (Dei verbum, 12). A busca dos significados dos textos é uma tarefa permanente para os estudiosos. Desde então, em língua portuguesa, foram várias traduções levadas a cabo com diferentes chaves metodológicas, mas sempre com a intenção de comunicar o sentido original do texto de modo claro e acessível aos fiéis e mesmo aos estudiosos. Nesse sentido, a era conciliar é a era das traduções. A Igreja, sensível e inserida nas realidades socioculturais, ausculta os sinais dos tempos e procura tornar a Palavra mais acessível à realidade concreta dos fiéis: É dever de todo povo de Deus e sobretudo dos pastores e teólogos, com a ajuda do Espírito Santo, saber ouvir, discernir e interpretar as várias linguagens do nosso tempo, e julgá-las à luz da palavra de Deus, de modo que a Verdade revelada possa ser cada vez mais intimamente percebida, melhor compreendida e apresentada de um modo mais conveniente (Gaudium et spes, 44). A nova tradução agora disponível segue a orientação conciliar no contexto cultural atual e no contexto da Igreja do Brasil. Nasce para levar a experiência da Palavra de Deus ao povo no tempo de hoje.

O delicado e exigente equilíbrio que deve fazer justiça tanto ao texto original quanto às condições culturais atuais forneceu o parâmetro mais fundamental da tradução. Foi nas idas e vindas das versões que iam sendo elaboradas, nas inúmeras revisões e nas muitas reuniões realizadas pelos diversos autores que as traduções tomaram sua forma final com um olho no texto e outro na realidade. Um trabalho de regência de orquestra que precisa conciliar unidade e diversidade, por meio de instrumentos bem afinados e com músicos competentes. A peça musical é agora oferecida ao público e deverá buscar adeptos que, na verdade, não somente escutam uma melodia nova, mas são, de fato, sujeitos dispostos a tocarem com partitura, mas, sobretudo, a tocarem de ouvido essas peças melódicas a serem experimentadas com o coração e com a inteligência. Como ensinou o Vaticano II, auscultando e discernindo as várias linguagens de nosso tempo, os tradutores reconstroem os modos de entender e traduzir os textos. Sem as ferramentas  das ciências bíblicas, não teria sentido uma nova tradução.

É das ciências que advêm os questionamentos das formas antigas de traduzir e interpretar e as possibilidades mais refinadas de “apresentar a verdade revelada” de “modo mais conveniente”. Nesse sentido, enganam os fideístas de ontem e de hoje que delegam ao Espírito Santo a autoridade direta de toda interpretação e dispensam os esforços da razão para buscar os significados do que se crê como revelado. Se a fé é o começo, o meio e o fim de toda tradução, as ciências são os meios indispensáveis de realizá-la, ainda que permaneçam, juntamente com os tradutores, escondidas nos subsolos e nas entrelinhas do texto. O serviço do tradutor bíblico não é somente técnico – e rigorosamente técnico –, mas serviçal, uma autêntica diakonia à Palavra de Deus, que o texto guarda como segredo mais íntimo a ser revelado a todos, de modo particular aos pobres e pequenos (Mt 11,25) em cada tempo e lugar. Para os seguidores de Jesus, ele é a Palavra encarnada, Palavra viva que fala permanentemente na vida, no irmão e no texto. O texto onde ele fala é mediação que conduz ao encontro com sua pessoa. Cada tradução da Bíblia relembra que o texto não é confinamento fixo da Palavra, mas caminho a ser seguindo. A tradução é mapa do caminho que conduz ao encontro com a Palavra viva. Esta Palavra viva e atuante, que não se reduz a nenhuma letra e não se confina a uma única interpretação, exige busca permanente de todos os que a ela buscam. As traduções de ontem e de hoje são cântaros que conduzem a água viva até os sedentos.

Aos tradutores de hoje, Jesus repete o pedido pedagógico à Samaritana: “Dá-me de beber”. O resultado é que ele próprio se oferece como água viva (Jo 4,8-10). Da fonte profunda do poço, os tradutores retiram a água para oferecê-la aos sedentos no deserto da vida com seus cântaros novos. E como a sede retorna, voltamos sempre ao poço, e a cada época as vasilhas para retirar água vão se modificando. A água de sempre. As novas vasilhas. A Palavra de sempre, o poço dos textos, as novas traduções! A presente edição de Ciberteologia presta homenagem a este gigantesco trabalho que entra para a história das traduções da Bíblia no contexto católico e, de modo particular, no contexto brasileiro. Quer ser ao mesmo tempo um primeiro esforço de recepção do primoroso trabalho, abrindo alas para o desafio que, de agora em diante, se dispõe para os tradutores e para a Editora. O resultado de um grande mutirão que gerou a nova tradução exigirá outros mutirões para levá-la ao povo de Deus como mais uma contribuição à leitura orante, ao uso catequético e litúrgico, à reflexão pessoal e grupal e ao estudo. A tradução técnica e pastoral que vem a público continuará sendo traduzida pelos leitores que a ela se achegam como fonte de água capaz de saciar.


João Décio Passos
Editor

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