Joseph Ratzinger - Bento XVI | Editorial | Ciberteologia - Revista de Teologia e Cultura

EDITORIAL

Descrever com exatidão e justiça uma personalidade é sempre um grande desafio. A transitoriedade e a profundidade compõem aquilo que se define como identidade pessoal e impedem qualquer consideração conclusiva e até mesmo unívoca sobre esse território incomunicável e, em certa medida, misterioso. E, quando se trata de uma biografia complexa como a de um personagem público e de longa vida, o problema se amplifica. As camadas temporais que compõem essa personalidade se traduzem igualmente em distintos perfiz: já não se trata apenas de uma única persona (palavra latina derivada de prosopon, máscara em grego), mas de personagens distintos que cumprem papéis distintos em situações igualmente distintas. Em outros termos as personalidades não nascem prontas nem são entidades fixas e imutáveis, mas resultam de negociações com os contextos presentes. Não será essa a prerrogativa psicossocial exclusiva dos Papas, mas, de alguma forma, a de todas as pessoas, na medida em que o tempo passa e as personalidades se modificam, acomodando-se ao tempo e ao espaço no esforço de sobreviver e aí cumprir um determinado papel.

O ser humano é abertura permanente para incorporar o novo em si mesmo, abertura para o presente e para o futuro, para o mundo, para os outros e para o divino. É nessa abertura que o ser humano se faz e se revela como personalidade original. As grandes personalidades escrevem publicamente essa saga da construção de si mesmas em etapas e em sucessivas funções e identidades, uma vez que vivem um arco de sociabilidade de tal amplitude onde o papel social desempenhado já não lhes pertence exclusivamente. Qual será o papel do pai, do esposo, do profissional em suas várias funções? Não será o mesmo. As personalidades moldam-se às exigências de cada realidade que se impõe com suas demandas e exigências. “Viver é dar à luz a si mesmo”, dizia Erich Fromm. Quantos partos, quantas personalidades! A vida humana é mudança permanente. Quais personagens compõem a vida de um Papa, desde a sua juventude? Quantos Joseph Aloisius Ratzinger atuaram desde a criança que nasceu em 16 de abril de 1927, em Marktl? Qual terá sido a personalidade do professor de teologia, do bispo, do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, do Papa e do bispo emérito de Roma? Não se trata de afirmar uma liquidez de identidade pessoal, mas de perceber a real dinâmica da vida humana que exige de cada indivíduo um modo de ser distinto para dar conta das exigências existenciais que vão sendo interpostas e, por conseguinte, os papéis sociais e institucionais a serem exercidos.

O Papa, o Prefeito e o Professor! Eis as fases principais desse personagem que marcou a Igreja do século XXI, sobretudo pela decisão inédita de renunciar ao trono de Pedro. Além do mais, estamos diante de um personagem marcado por experiências múltiplas, enquanto exercia a função de professor. Peregrinou por Universidades alemãs, Munique, Bonn, Münster, Tübingen e Ratisbona, nas quais migrou de disciplinas, enquanto exercia o magistério. Durante o Vaticano II foi consultor do Arcebispo de colônia e Perito conciliar. Aí exerceu a função de pensar como teólogo a renovação desejada por João XXIII, no marco da tradição que exige continuidade e da instituição milenar que busca preservar-se. O princípio sentire cum ecclesia exigia, por certo, dos teólogos e peritos pensar para além de muitas convicções individuais, refletir em grupo, negociar o desejável com o possível, na busca do consenso.

O aggiornamento promovido pelo Concílio não deixou ninguém isento do desafio da conversão, de modo particular àqueles que, como ele, apostavam na necessidade de grandes reformas da Igreja no mundo que se modernizara sob todos os aspectos. O teólogo do Concílio contribuiu com a construção de uma nova eclesiologia que se deslocou de uma visão hierarcocêntrica para uma visão de comunidade: corpo místico, povo de Deus, comunhão. Joseph Ratzinger foi, sem dúvidas, um dos teólogos axiais do Vaticano II, deixando suas marcas na doutrina da Igreja consignada na Constituição Lumen Gentium, que soube articular, organicamente, primado papal e colegialidade episcopal. Nesse ponto eclesiológico crucial, o perito conciliar comentava, ainda em 1965: De um lado o Papa nunca deverá deixar sem atenção a opinião dos Bispos e com eles a opinião da Igreja inteira. De outro lado deverá haver iniciativas realmente independentes do episcopado; de fato não devemos restringir aos tempos apostólicos e à Igreja dos Padres a incumbência de ajudar, com críticas, o Papa em sua missão (BARAÚNA, Guilherme. A Igreja do Vaticano II, p. 777).

Como sabemos, a temática da colegialidade foi a pedra de toque da eclesiologia conciliar. A questão se apresentou como avanço em relação ao Vaticano I e, ao mesmo tempo, como causa pétrea daqueles que não aceitaram a renovação conciliar e romperam com o consenso eclesial e o magistério conciliar. De fato, o personagem eclesial Ratzinger (o teólogo, o bispo, o Prefeito e também o Papa) foi portador de uma perspectiva original sobre a questão, tendo em vista seus domínios teóricos sobre o assunto, assim como os lugares eclesiais que ocupou. A nomeação direta do teólogo para o arcebispado de Munique em 1978 abre uma fase inédita e sua vida, função que durou apenas cinco anos. Mas como bispo, no novo lugar eclesial, já não se trata de ensinar teologia como professor, mas como membro do magistério exercido na colegialidade episcopal. No primeiro, o ensino avança nas cobranças mútuas da fé e da razão, sendo a
investigação a dinâmica permanente; no segundo o magistério responde pela preservação do consenso eclesial e, por conseguinte, na reprodução vigilante da traditio, o primeiro fala de dentro da pluralidade e avança no diálogo, o segundo fala de dentro da unidade e zela por sua organicidade.

Mas, o que para o bispo faz parte do múnus de ensinar no conjunto da Igreja, tornar-se-á função particular para o Prefeito do Dicastério romano dedicado à Doutrina da fé. Dicastério significa juiz em grego (Dikastés). Essa função tem suas exigências nem sempre simpáticas,
sobretudo para a Igreja que avança na recepção das renovações conciliares. Os tempos de reforma carregam sempre desafios que confrontam conservadores e renovadores, o que, em termos doutrinais, pode ser traduzido, com certa pressa, em ortodoxia e heterodoxia. O então Cardeal Ratzinger esteve no centro dessa luta e pagou o preço de suas decisões, justas ou não, na qualidade de Prefeito responsável pela doutrina católica. Aí não poupou palavras nem posturas como vigilante da sã doutrina e da interpretação legítima das decisões conciliares.

De fato, as funções institucionais têm suas exigências para aqueles que as ocupam, de forma que o personagem impõe sobre os indivíduos valores, padrões e regras de ação a serem cumpridos, para além de suas escolhas pessoais. Os que já ocuparam cargos institucionais sabem disso. Para o teólogo que se tornou Prefeito, a função de julgar – de supervisionar a doutrina da Igreja, no caso – significou, por certo, negociação com novas realidades: a liberdade do ensino e da investigação teológica cede lugar para a função da vigilância, sendo a ordem mais fundamental que a criatividade e a crítica. A identidade católica foi afirmada sempre mais como eixo e bússola capazes de orientar os tempos pós-conciliares, quando as renovações eclesiais tomavam forma nos quadrantes da Igreja.

A eleição como Papa veio como um evento natural para aquele que fora em grande medida o assessor teológico do Papa João Paulo II e o juiz privilegiado das renovações eclesiais. O nome Bento carregava um significado histórico, cultural e eclesial, emprestado daquele que fora o marco da Idade Média e da Europa católica: São Bento de Núrsia. Com efeito, o Papa não é mais o Prefeito, agora bispo de Roma, Patriarca do Ocidente e Sucessor de Pedro. 

No discurso aos Cardeais no dia 22 de abril de 2005, manifestava suas expectativas e convicções sobre a nova missão que acabara de assumir: Se por um lado tenho presente os limites da minha pessoa e das minhas capacidades, por outro sei bem qual é a natureza da missão que me foi confiada e que me preparo para desempenhar com uma atitude de dedicação interior. Não se trata de honras, mas de serviço a desempenhar com simplicidade e disponibilidade, imitando o nosso Mestre e Senhor, que não veio para ser servido, mas para servir (cf. Mt 20,28), e na Última Ceia lavou os pés dos apóstolos dizendo-lhes que fizessem o mesmo (cf. Jo 13,13-14). Portanto, mais não nos resta, a mim e a todos nós juntos, que aceitar da Providência a vontade de Deus e fazer o melhor que podemos para lhe corresponder, ajudando-nos uns aos outros no cumprimento das respectivas tarefas ao serviço da Igreja. Os sete anos de pontificado mostraram, de fato, o Papa discreto e os desafios de liderar a Igreja nos tempos da globalização e da informação cada vez mais planetarizada e ágil. A Igreja isolada do mundo e autorreferenciada política e juridicamente não tinha mais condições de subsistência.

A sucessão de um longo pontificado teve, por certo, seu preço, quando se considera aquilo que havia sido consolidado como poder interno da Cúria Romana e como tendência na Igreja como um todo. Determinados interesses e alinhamentos político-eclesiásticos mostraram sua força e influência na Igreja, culminando nos conhecidos escândalos políticos e morais. O pontificado que pareceria simples continuidade do anterior, gestão de uma regularidade segura e baseado em uma sólida teologia, revelou cada vez mais suas agruras, na medida em que eram desvelados fatos que colocavam a público os pecados da Igreja. O poder do Prefeito da Congregação para a Doutrina da fé, não obstante sua concreta envergadura, permanecia no âmbito das ideias e da doutrina, sem vínculos e incidências no funcionamento regular da Cúria romana; ou seja, controlar as ideias era diferente de controlar o corpo eclesiástico e curial como um todo. As divergências teológicas das quais se ocupara por ofício eram, por certo, pequenas perante os conflitos internos do aparelho curial. A competência teológica não resolvia diretamente os problemas políticos. O Papa de idade avançada e os problemas internos trouxeram a decisão inesperada da renúncia anunciada no dia 11 de fevereiro de 2013. As razões foram expostas de modo sucinto e decidido: Após ter repetidamente examinado minha consciência perante Deus, eu tive certeza de que minhas forças, devido à avançada idade, não são mais apropriadas para o adequado exercício do ministério de Pedro. Eu estou bem consciente de que esse ministério, devido à sua natureza essencialmente espiritual, deve ser levado não apenas com palavras e fatos, mas não menos com oração e sofrimento. Contudo, no mundo de hoje, sujeito a mudanças tão rápidas e abalado por questões de profunda relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e proclamar o Evangelho, é necessário tanto força da mente como do corpo, o que, nos últimos meses, se deteriorou em mim numa extensão em que eu tenho de reconhecer minha incapacidade de adequadamente cumprir o ministério a mim confiado.

A notícia pegou de surpresa a Igreja e o mundo. A decisão rompia com uma longa tradiçãono governo geral da Igreja Católica. O gesto provocou e ainda provoca as mais variadas interpretações. Qual terá sido o estopim da decisão de tamanha seriedade? O mundo em rápida transformação e abalado por questões de profunda relevância exigia um Papa mais jovem e com mais forças. Essa justificativa lacônica feita pelo Papa se dava, contudo, no contexto de uma das maiores crises vivenciadas pela Igreja. Os episódios são conhecidos e não necessitam ser relembrados. O fato é que o Pontífice saia de cena confessando humildemente sua incapacidade de governar a Igreja e abria uma era de revisão inevitável de rota, como ficará explicita nas Congregações que prepararam o novo Conclave. A consciência da incapacidade não constitui somente um ato de humildade, mas também uma decisão politicamente calculada que percebe a conjuntura eclesial e histórica, que decide por romper com uma regularidade e por lançar e Igreja para o desafio de construção do novo. Nesse sentido, foi a renúncia de Bento XVI que gerou Francisco com seus projetos de reforma da Igreja. A decisão de renunciar não rompia somente com uma longa tradição, mas também com uma cultura eclesial e um regime eclesiástico que deveria ser refeito de alguma forma. Bento XVI revelou corajosamente uma crise a ser superada pelo sucessor. Se não houve cálculo ou previsão dessa dinâmica política, houve, com certeza, uma confiança na condução divina da Igreja, quando o novo emerge como graça e como projeto. Humildade, confiança ou estratégia política? A atenção aos fatos faz pensar em uma combinação ou unidade dessas atitudes no ato da renúncia.

Sete anos depois o Bispo emérito de Roma ainda recordava os significados e as interpretações sobre sua renúncia: Foi uma decisão difícil”, explicou o Papa emérito, “mas tomei-a em plena consciência, e acredito que fiz muito bem”. Alguns de meus amigos um tanto “fanáticos” ainda estão irritados, eles não quiseram aceitar minha escolha. Acreditam nas teorias de conspiração: alguns disseram que foi por causa do escândalo Vatileaks, outros por causa de um complô da lobby gay, outros ainda por causa do caso do teólogo conservador Lefebvrian Richard Williamson. Eles não querem acreditar em uma escolha feita conscientemente. Mas minha consciência está limpa (Vatican News, de 1o de fevereiro de 2021).

A renúncia fez e faz parte de um processo histórico-eclesial em curso na Igreja. Uma Igreja que se encontra, ainda, nas encruzilhadas dos tempos modernos e se vê desafiada e pensar a si mesma, suas dinâmicas de funcionamento e suas próprias estruturas. O Papa Francisco retomou com força e coragem as reformas empreitadas pelo Vaticano II. Os amigos fanáticos a que se referiu o Bispo emérito de Roma resistem como personagens, como grupos e como frente dentro da Igreja. O fanatismo vive da saudade de Bento e da rejeição a Francisco. Como toda postura tradicionalista, vive de um passado que não existe mais. Nesse sentido, a morte de Bento XVI abre uma nova etapa para os fanáticos, deixando historicamente desamparada a ideia cismática de um Papa alternativo concomitante ao atual. Nos tempos líquidos e da pós-verdade essa heresia católica subsistiu como fato natural dentro da Igreja. Com certeza, de todo o rico percurso biográfico de Joseph Aloisius Ratzinger, ficará marcada para a posteridade a sua renúncia. O teólogo seguro dos dogmas católicos e convicto dos rituais e das disciplinas tradicionais, renunciou sem grandes cerimônias, com convicção e serenidade. Será legitimo considerar que foi precisamente da segurança teológica que adveio a segurança da renúncia? O gesto ensinou que na Igreja as coisas podem mudar sem ferir aquilo que a fundamenta em sua essência. O Pontificado nunca mais foi o mesmo, a Igreja Católica nunca mais foi a mesma.

Bento XVI foi o último Papa que vivenciou a virada conciliar na função de Bispo. Nesse lugar histórico-eclesial escreveu sua história como personagem de grande envergadura intelectual e eclesiástica. No dia 31 de dezembro de 2022 o bispo emérito de Roma concluiu seu itinerário na clausura voluntária, distante dos holofotes públicos e escutando as batidas fortes do coração de seu sucessor reformador, vizinho mais próximo e mais distante. O funeral inédito de um ex-Papa presidido por um Papa revelou a grandeza e a pequenez do humano elevado ao status de sacralidade e repetiu os rituais solenes que atraem multidões. A sepultura na antiga tumba de João Paulo II não podia ser mais natural: comunhão de vida e de memória. O presente dossiê de Ciberteologia quer honrar essa figura ímpar da Igreja que marcou a virada do século na comunidade católica. O dossiê é aberto com um Artigo escrito pelo perito conciliar, em pleno Concílio ainda no ano de 1965, um frontispício que soleniza as reflexões. O formato original foi mantido na publicação pioneira organizada por Frei Guilherme Baraúna pela Editora Vozes (A Igreja do Vaticano II). Essa editora autorizou gentilmente a publicação do memorável texto. A ela nossos sinceros agradecimentos. O dossiê resgata ainda um artigo escrito pelo teólogo Carlos Josaphat, envolvido nas assessorias dos peritos conciliares. Os demais Artigos expõem aspectos do pensamento do teológico e da figura do Papa. O modesto dossiê quer fazer honra a Joseph Aloisius Ratzinger (1927-2022), na ocasião do grande de seu grande encontro com a Sabedoria que lhe encantou durante sua longa existência.

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