EDITORIAL
Deus está presente e age na nossa história. O Espírito Santo, que se derrama do Coração de Cristo Ressuscitado, opera na Igreja com divina liberdade e nos oferece tantos dons preciosos que nos ajudam no caminho da vida e estimulam o nosso amadurecimento espiritual, na fidelidade ao Evangelho (Dicastério para a Doutrina da Fé).
As visões/aparições de entidades sobrenaturais fazem parte das tradições religiosas de modo geral. O mundo superior é onde habitam o divino ou os seres supremos, bem como, para muitas tradições, os mortos podem se manifestar no mundo dos mortais e se comunicar com determinados indivíduos. Para todas as tradições religiosas não vivemos em mundos completamente isolados, mas, ao contrário, em mundos distintos que se comunicam de algum modo e com certa regularidade. Os contatos/visões com os seres sobrenaturais podem ser aleatórios e estranhos, caso das populares assombrações, mas regularmente se insere dentro de um relacionamento previamente estabelecido. São encontros pessoais, pois acontecem entre um ser sobrenatural e um ser mortal que, de algum modo, se reconhecem; são também motivados por alguma razão que justifica o contato extraordinário. As crises são quase sempre o contexto e a razão de uma presença sobrenatural que exorta a humanidade por meio do vidente escolhido como mensageiro. Mas podem também estar inseridos na rotina de determinadas tradições religiosas, como no caso das práticas de determinadas religiões arcaicas, em que o contato do líder religioso com os seres sobrenaturais é central e estruturante. Os diversos tipos de xamanismo tipificam esses contatos naturais entre os dois mundos. Nas tradições monoteístas, as visões também se fazem presentes. Na verdade, elas compõem as suas próprias narrativas de origem: Moisés e a visão de Javé no Sinai, as visões de Jesus ressuscitado no cristianismo e a visão do anjo Gabriel por Mohamed. Nesses casos, as narrativas visionárias constituem o próprio fundamento da tradição religiosa.
As visões/aparições ocorrem como “concretizações” dos imaginários que compõem os sistemas de crença povoados por personagens antropomórficos residentes na esfera transcendente. Sem o imaginário prévio bem definido por personagens portadores de identidade pessoal e estética e revestidos de funções e poderes, não haveria possibilidade de qualquer manifestação. O sobrenatural que se manifesta supõe o conhecimento dos videntes e dos grupos que a ele se vinculam. Sem esse pressuposto cognitivo, qualquer manifestação “sobrenatural” não seria reconhecida, não causaria no vidente nada além do que espanto, medo ou terror. Uma visão religiosa significa, portanto, o reconhecimento do que já é conhecido ou, antes, a projeção imagética de imagens já interiorizadas. E não se trata tão somente de um princípio cognitivo clássico nada está na mente que não tenha antes passado pelos sentidos –, mas também de um princípio de fé: é preciso crer naquelas imagens, crer que uma visão é, na verdade, uma aparição. Quem não tem Maria em seu sistema de crenças não vai vê-la, da mesma forma que quem não crê na incorporação de um morto em um médium não vai fazer tal experiência religiosa. As religiões animistas conversam com os espíritos que habitam a natureza. Um católico vê Maria segundo as formas que habitam sua mente católica; já um evangélico vê Jesus segundo o seu imaginário.
É, portanto, dentro de um imaginário coletivo que as visões são possíveis. A objetividade de imagens e linguagens comuns a um grupo sociorreligioso possibilita o fenômeno, seja no sentido cognitivo, seja no sentido de uma relação que se estabelece entre a visão, o vidente e o grupo de receptores. As visões ganham visibilidade e persuasão narrativa, na medida em que o vidente conta com o apoio de um grupo que crê e reconhece suas visões como autênticas experiências sobrenaturais: como aparições. É sempre um processo de construção social que vai adquirindo força narrativa, expansão e adesão a partir do grupo de apoio do vidente. Sem o grupo uma experiência mística estaria reduzida à esfera restrita e, até mesmo, incomunicável da pura individualidade. A sequência aparição-vidente-mensagem-grupo é o pressuposto constitutivo de todo fenômeno visionário. O grupo social é, ao mesmo tempo, receptor, intérprete e legitimador das visões; no fundo, é o autor que permite normalizar e divulgar o fenômeno como fato e mensagem autênticos.
O fato é que todo fenômeno visionário ocorre dentro de uma religião, ou seja, no âmbito de um sistema de crença institucionalizado que regula os imaginários e as práticas religiosas do grupo/indivíduos, distinguindo-os como autênticos ou inautênticos, possíveis ou impossíveis. Em todas as confissões religiosas há um momento de juízo oficial dos especialistas religiosos que confere a legitimação e oficialização que autoriza ou desautoriza a experiência mística. Isso pode ocorrer como ação espontânea que integra as experiências sobrenaturais na rotina da vida religiosa, como no caso das religiões de incorporação ou no próprio pentecostalismo, ou como ação oficial que interfere no processo por meio de uma autoridade religiosa investida da função de discernir e legitimar o fenômeno. No primeiro caso, o “sagrado selvagem” habita o interior do grupo e nele se manifesta regularmente em experiências místicas e na dinâmica do próprio culto. O próprio grupo reconhece e legitima os fenômenos como experiência que compõe sua identidade. No segundo, o “sagrado racionalizado” se insere na instituição estruturada entre hierarquia e leigos, entre especialistas e populares e para se manifestar de forma legitima precisa estar dentro dos parâmetros doutrinais estabelecidos como verdade que distingue o falso do verdadeiro.
No caso da Igreja Católica, sem esse momento de oficialização, o fenômeno das visões/aparições pode cair na rotina e no esquecimento, perdendo cada vez mais o amparo do grupo que lhe garante ressonância. As aparições/visões marianas são inúmeras e constantes na Igreja Católica. Hoje, sobretudo nos espaços eclesiais pentecostalizados, são cada vez mais comuns e se mostram como fato regular e, muitas vezes, por meio de roteiros bastante semelhantes; porém somente um número restrito de visões é oficializado como fenômeno espiritual positivo para a vida da comunidade eclesial, de forma que possam ser indicadas ao culto de fiéis devotos. Não se trata de um simples controle político, mas de uma regula fidei que caracteriza o catolicismo a partir das próprias fontes. A distinção entre as posturas e os fatos regulares e institucionalizados e os espontâneos e populares faz parte do éthos e do modus operandi católico. E, mesmo quando um grupo eclesial confere legitimidade a um fenômeno místico sem solicitar ou necessitar de reconhecimento oficial, este permanecerá na zona da suspeita, senão da heterodoxia. Na tradição católica, deverá aguardar algum reconhecimento no futuro, ou tenderá a sucumbir-se no isolamento grupal.
As aparições marianas fazem parte da história do catolicismo; são expressões concretas e criativas da centralidade de Maria nas práticas devocionais católicas, mesmo que na esfera da doutrina oficial a centralidade esteja obviamente reservada a Cristo. Os incontáveis títulos marianos com suas respectivas funções expressam igualmente esta centralidade devocional, mais que os poucos dogmas marianos. A intensa criação de títulos/invocações com suas respectivas imagens compõe o imaginário católico e revelam dinâmicas próprias de sua identidade: a) na distinção entre o oficial e o popular; b) na criatividade da fé popular; c) na figura feminina como central nas devoções; d) na inculturação da Igreja católica em cada localidade; e) na função da estética nos templos e nos cultos; f) nas criações estéticas populares expressas nas imagens de Maria; g) nas múltiplas funções das devoções em relação às situações limites da existência humana. As visões/aparições podem ser localizadas dentro deste universo criativo do catolicismo popular com o qual as instâncias oficiais negociam permanentemente. Podem ser entendidas como criações populares que reivindicam, entretanto, um status de revelação direta com a própria Maria triunfante que habita os céus.
Quanto às traduções imagéticas das visões sobrenaturais, haveria que verificar o papel direto do vidente ou o papel preponderante dos artistas que se encarregam de oferecer um desenho apropriado. Em muitos casos, a liberdade do artista tem uma função determinante no imaginário devocional que se constrói após da fase da visão. Tanto quanto os parâmetros doutrinais utilizados pelos especialistas católicos, os parâmetros dos artistas que representam as visões têm um papel performativo na perpetuação das devoções. De fato, mais que as delimitações doutrinais que reconhecem as visões/aparições, a criação artística das imagens é que permite construir concretamente os templos com suas imagens e, de modo mais concreto ainda, as devoções no âmbito familiar ou individual. As pequenas imagens e estampas introduzidas no âmbito doméstico possibilitam a divulgação e sobrevivência das narrativas oferecidas pelos videntes com seus apelos à vivência religiosa.
A criatividade mariana parece ser um impulso incontrolável dentro do catolicismo, assim como as experiências místicas de um modo geral. A fé popular se expressa para além dos roteiros previstos pelos cânones e pelas teologias marianas. Há quem associe a intensa criação mariana com um imaginário religioso muito masculino, centrado nas figuras do Pai e do Filho que resume o cristomonismo ocidental. Ademais, a centralidade do sexo masculino na hierarquia católica reforçaria essa imagem carente de maternidade e de sexo feminino. A relação direta mãe-filho poderia ser a expressão compensatória do patriarcalismo cristão e, sobretudo, católico?
Na tradição católica haverá sempre um visível e inevitável desequilíbrio entre a espontaneidade e criatividade das visões/aparições marianas e a doutrina mariana oficial. É nessa tensão inevitável que a história das visões se insere, de forma que podem ou não ser reconhecidas pela ortodoxia católica. A devoção mariana e a mariologia tecem uma circularidade inevitável, embora a criatividade popular tenda a prevalecer segundo as condições psicossociais e religiosas dos videntes. Os videntes não são mariólogos nem sempre possuem um arcabouço doutrinal que ofereça a base para edificar suas narrativas visionárias. No fundo da problemática reside, por certo, a distinção estrutural entre o catolicismo popular – nas suas mais variadas expressões – e catolicismo oficial, com suas doutrinas e regras.
O presente dossiê localiza-se no centro dessa dialética popular-oficial. Embora a questão das visões/aparições acompanhe a história da Igreja, tem como motivação imediata as novas orientações emanadas do Dicastério para a Doutrina da Fé, para o discernimento dos fenômenos visionários de 4 de maio de 2024 (Normas para proceder no discernimento de presumidos fenômenos sobrenaturais). As novas normas oferecem novos critérios de discernimento para os presumíveis fenômenos. Embora se possam situar os fenômenos visionários na periferia das grandes questões eclesiais a serem reformadas, segundo a programática do Papa Francisco, as normas trazem consigo uma reforma significativa que consiste no deslocamento do sobrenatural (a ser afirmado ou negado) para os frutos espirituais e pastorais do fenômeno com suas repercussões eclesiais. No fundo trata-se de discernir com a única régua que define o cristianismo: o discernimento evangélico. Já era tempo deixar os discernimentos científicos no seu justo lugar e abandonar, portanto, a pretensão de reconhecer a sobrenaturalidade do fenômeno, quando a ciência não consegue explicar. Um fenômeno visionário será sempre um fenômeno de “estado alterado de consciência” para a psicologia, o que pode ser explicado como mais ou menos patológico; será também um fenômeno de “construção social”, para as ciências sociais, fato que pode ser visto como mais ou menos livre ou manipulado. Para além dos limites e sanidades humanas, uma presumível aparição pode estar em sintonia com o Evangelho e, por conseguinte, contribuir com a vivência de fé das comunidades eclesiais. Para o cristianismo, o Evangelho é a norma absoluta e não a presumível aparição, mesmo quando assimilada pela ortodoxia da Igreja e declarada legítima.
O dossiê segue um roteiro que visa contribuir com o discernimento dos fenômenos visionários. Os dois primeiros artigos situam o fenômeno das aparições no marco teológico-doutrinal católico; respondem sobre os critérios adotados pela Igreja oficial para discernir o fenômeno no decorrer da história e, segundo, as normativas atuais. Os dois artigos seguintes oferecem duas narrativas sobre o fenômeno: a primeira revisita a conhecida narrativa de Guadalupe, no México; e a segunda oferece informações e análises inusitadas sobre a devoção japonesa a N. S. de Akita. Os dois artigos finais discorrem, respectivamente, sobre as interpretações marianas de imagens naturais e a recente construção da N. S. da Amazônia. As devoções marianas são ricas e plurais e acompanham o catolicismo no tempo e no espaço, assumindo as cores e os clamores
dos diversos povos.
Mãe do céu Morena
Senhora da América Latina
De olhar e caridade tão divina
De cor igual a cor de tantas raças (Pe. Zezinho).
João Décio Passos
Editor