Centenários Ilustres | Editorial | Ciberteologia - Revista de Teologia e Cultura

EDITORIAL

Centenários Ilustres

 

Um século é uma longa temporalidade para cada geração. Embora a longevidade tenha aumentado nas últimas décadas, a marca dos cem anos é uma conquista para poucos. Nas narrativas míticas antigas, os heróis eram premiados com longevidades extraordinárias. Enoch viveu 365 anos, Matusalém 969, Noé 950, Abraão 175. A vida longa é um desejo humano. Os heróis encarnam esse desejo. Alguns deles alcançam a imortalidade, como no caso de Elias que foi arrebatado aos céus ou do profeta Mohamed. A morte de Moisés permaneceu um mistério. Morreu com 120 anos e foi sepultado pelo próprio Deus em um lugar desconhecido. Os heróis que estão próximos de Deus vivem mais, usufruem de sua eternidade, embora um dia terminem morrendo.


A história dos homens concretos é bem diferente. Todos morrem e quando mais recuamos na história da humanidade menor a estimativa de vida. A média de vida no mundo antigo era de 30 anos. Na idade média não mudou muito. Tomás de Aquino morreu com 49 anos, São Francisco de Assis com 44. O século XX marcou um grande salto nessa estimativa, de forma que a expectativa de vida quase dobra do início para o fim do século. Em nossos dias a estimativa de vida cresce sem cessar com os avanços das ciências. É cada vez menos raro depararmos com centenários em plena vitalidade.
A vida longa continua sendo um desejo de todos e, inclusive, da medicina e das políticas públicas de muitos governos. Muitas mentes geniais e corações bondosos teriam, por certo, deixado contribuições ainda maiores para a humanidade se tivessem vivido por um período mais longo. O fato é que os grandes gênios e os grandes líderes e santos são feitos de terra e para ela voltam sem qualquer privilégio. “Do pó ao pó”, repete a sentença da condição humana real. Para os cristãos, o filho de Deus também morreu. Deus assumiu a morte, morrendo como todos nós em seu filho. Na fé cristã a morte está demitizada; deve ser assumida como fato e como passagem para a vida. Em Jesus crucificado a morte foi vencida sendo assumida e não sendo evitada. O caminho para vida passa por dentro da morte. O herói cristão vence a morte morrendo como o Mestre e não fugindo da morte ou buscando soluções miraculosas como nos mitos antigos.


Nesse ano de 2021 celebramos o centenário de alguns líderes ilustres: três brasileiros e um francês. Todos marcados para voltar ao pó, porém ungidos de modo original pelo dom da sabedoria. São ilustres! No latim a palavra (illustris) significa claro, iluminado, brilhante e conhecido. São quatro homens iluminados e iluminadores de uma geração marcada por luzes e trevas. A eles daríamos a idade dos heróis antigos como prêmio pelo bem realizado à humanidade em seus respectivos contextos. Alguns morreram em idade bem avançada. Outro nem tanto. Todos viveram intensamente e sem reservas na missão que assumiram como caminho de vida. Não viveram tanto como os heróis míticos, mas viveram mais que grandes homens do passado. Na ordem ascendente: Paulo Freire viveu 75 anos, Paulo Evaristo Arns 95, Carlos Josaphat 99 e Edgar Morin já ultrapassou os 100 desde 8 de julho desse ano. Nasceram em 1921 em um mundo que era outro. Tempos de crise e de reconstrução desesperada das condições de vida e das relações internacionais, no intervalo dramático entre as destruições da Grande guerra e os prenúncios da grande depressão. No Brasil, o ano foi marcado pela morte da Princesa Isabel (na França) e pela criação do Jornal Folha de São Paulo. Os quatro ilustres atravessaram o século das maiores transformações negativas e positivas da historia da humanidade e nessa temporalidade deixaram suas marcas. Viram e vivenciaram os impactos da grande depressão, da segunda guerra, da guerra fria, de crises políticas, de ditaduras, da queda do regime socialista. Viram a criação do Estado de Israel, a chegada do homem à lua, os avanços da medicina, as mudanças do Vaticano II, os processos de libertação das colônias europeias africanas, a emancipação feminina, a revolução sexual etc. Edgar Morin viveu para ver a maior pandemia da história e constatar a veracidade de seus ensinamentos sobre a interligação de todas as coisas: “De fato, a importante revelação dos impactos que sofremos é que tudo aquilo que parecia separado está conectado, porque uma catástrofe sanitária envolve integralmente a totalidade de tudo o que é humano”.


Em tempos em que bandidos se passam por heróis e ganham seguidores fiéis, recordar esses grandes homens é um ato de fazer memória urgente daquilo que pode contribuir com a convivência humana saudável e ajudar a distinguir o falso do verdadeiro. Foram homens como quaisquer outros: nasceram, profissionalizaram-se, envelheceram, sofreram e se alegraram. No fim morreram como todos morrem, mas deixaram suas marcas que devem ser relembradas para que nos ajudem a construir os rumos de uma civilização que se encontra despedaçada: com seus sonhos em pedaços, diz o Papa Francisco. Não podemos mais dar a esses líderes a idade dos antigos heróis bíblicos e nem mesmo a imortalidade. Porém suas memórias devem ser eternizadas por nós. Foram mestres que ensinaram com suas vidas e com suas palavras inteligentes, sensíveis e sábias. “Os conscientes hão de brilhar como relâmpagos, os que educaram a muitos para a justiça brilharão para sempre como estrelas” (Dn 12,3).


Os quatro líderes conscientes e educadores da justiça brilham em nossa história. São estrelas porque foram sábios e ensinaram a sabedoria. São heróis porque trilharam o caminho simples da sensibilidade para com os semelhantes. São profetas porque ensinaram a verdade sem temer os poderes que vivem de ideologias que escondem a verdade. Nenhum deles negociou a justiça em nome de qualquer prestigio pessoal e comodidade política. Paulo Freire e Carlos Josaphat sofreram o castigo do exílio, prêmio para os autênticos que não temem os poderes autoritários e abraçam a liberdade como causa inegociável. Paulo Evaristo Arns foi perseguido pelo mesmo regime e pagou o preço de sua autenticidade dentro e fora da igreja. Edgar Morin assumiu a causa dos povos e do planeta contra o etnocentrismo europeu e o status da ciência normal que credencia os bons teóricos na hegemônica epistemologia do norte. Estrelas que brilham no céu da história como grandes guias para as gerações que seguem a marcha da humanidade em busca de dias melhores, tempo em que a justiça e a paz se abracem e se transformem em casa comum para todos os iguais e diferentes.


Celebrar os cem anos de nascimento desses homens significa trazer à luz aquilo que os faz heróis, sem os holofotes dos poderes e das próprias mídias. O herói injusto brilha somente para os séquitos de seu grupo e de sua geração. Brilham com seus próprios holofotes artificiais que cegam os olhos dos seguidores. No dia em que são apagados eles se tornam monstros que vão para a escuridão da história. Os heróis autênticos não morrem e brilham no céu como estrela guia dos que buscam a verdade e querem aprender a amar os semelhantes e cuidar da vida do planeta. Os cem anos de nascimento das quatro celebridades é apenas um marco celebrativo; marco importante, mas tão somente cem anos. A eles as gerações futuras darão o prêmio da duração contínua, a vida longa dos heróis míticos que atravessa os séculos. Todos permanecerão vivos na memória dos que compõem a galeria dos que não morrem: dos valores sempre atuais, do testemunho de vida, da sabedoria que orienta, da coerência de vida, da esperança que constrói…


Nossos heróis que brilham no céu possuem, na verdade, brilhos próprios. Cada qual viveu seu ciclo de vida como sujeitos históricos marcados por uma autoconstrução livre e responsável, situados em seus contextos específicos e orientados por utopias que abraçaram como valor e meta. O mundo que encararam e assumiram como tempo e espaço de suas ações transformadoras foi o mundo das grandes transformações e de profundas contradições. A vida planetária se impunha como dado político, social, cultural e ecológico, na medida em que a modernidade avançava em todas as direções e mostrava no mesmo movimento expansivo a construtividade e a destrutividade de seu projeto. As quatro figuras foram antes de tudo pastores da humanidade e, sobretudo, pastores das ovelhas perdidas. Todos cobraram da modernidade suas promessas de igualdade, de liberdade e de fraternidade; cuidaram dos mais frágeis com suas ideias, ensinamentos e posturas; cuidaram da vida planetária e sustentaram a esperança de outro mundo possível, mesmo quando as forças dos poderes econômico e político pressionavam na direção oposta. Foram humanistas nos sentidos clássico, bíblico e moderno. O ser humano foi assumido e ensinado como valor inegociável, como dignos por si mesmos e sujeitos de direitos inalienáveis. Todos beberam dos grandes humanistas do século XX: do pensamento libertário que se edificou nos tempos modernos e se expandiu para as ciências humanas e para a teologia. Nessa fonte comum, os quatro se encontram e nela teceram seus itinerários intelectuais. Paulo Freire foi o grande educador do século XX; ensinou que a educação é o caminho de libertação das consciências e de construção da justiça social. Sem educação os poderes dominam as sociedades e a alma humana e reduz o ser humano à pequenez de seus desejos egoístas e violentos. Paulo Evaristo Arns, o franciscano, filho autêntico do pobre de Assis, ensinou que a luta pela justiça e os direitos humanos são causas éticas e cristãs indissociáveis e que a esperança por dias melhores não pode jamais ser enfraquecida. Repetia sempre seu lema episcopal: de esperança em esperança! Nessa dinâmica viveu seus dias conturbados como bonança dos justos. Carlos Josaphat, o dominicano revolucionário, incomodou seus pares e, sobretudo, seus ímpares de dentro e de fora da igreja. Teceu um caminho original entre o sul e o norte do planeta injusto. Ensinou que o evangelho traz o germe da revolução social, que esse germe libertário eclodiu na história nas figuras de Tomás de Aquino, de Bartolomeu de las Casas, de João XXIII, de Marie-dominique Chenu e Yves Congar, de Gustavo Gutiérrez e do Papa Francisco. Edgar Morin, antropólogo, filósofo ou, simplesmente pensador da complexidade, ensinou que a vida planetária está conectada e constitui o parâmetro teórico, biológico, antropológico e ético para se pensar e, antes de tudo, viver a vida de todos na comunhão universal. Em seu mapa geral, os iguais e os diferentes encontram seu lugar digno, criativo, crítico e responsável. Sua longa existência o fez cada vez mais universal e sábio; capaz de ver as fraquezas humanas no âmbito das debilidades biológicas inerentes à vida e, ao mesmo tempo, acreditar no futuro da humanidade.


Cada qual exerceu esse pastoreio do humano com suas distintas vocações e competências. Os três primeiros foram profetas da resistência nos anos de chumbo da ditadura militar brasileira. Nesse contexto pensaram, criticaram e anunciaram a justiça seguindo a mais autêntica linhagem profética. Foram pensadores dos oprimidos e discípulos do Messias pobre que acolheu os excluídos de tempo. O pensador Morin jamais se rendeu ao eurocentrismo cultural e político. Seu percurso formativo e seu pensamento avançaram de modo orgânico para o humano universal e para a vida planetária. Denunciou como equivoco todas as formas de isolamento que escondem a globalidade e simplifica o complexo. Todos se posicionaram de modo inquieto entre o mundo construído a afirmado como bom pelos poderes hegemônicos e o mundo desejado como sustentável, justo e belo pelos menores e para todos. Nessa passagem crítica e construtiva do antigo para o novo ancoraram-se como pastores da vida e como mestres dos discípulos que buscam a verdade.
A sociedade atual se encontra em um momento crucial da história, quando a vida planetária mostra suas conexões definitivas em termos ecológicos, econômicos, cibernéticos e comunicacionais. Não se trata de uma conexão justa para os que defendem valores fundamentais: valor da vida, da igualdade e da fraternidade e de consciência da verdade. A globalização econômica esconde as diferenças sociais segundo as regras dogmáticas do capital liberal; esconde, igualmente, a destruição ecológica que vai matando os ecossistemas pelo mundo afora. A força do dinheiro internacional desconhece o imperativo da vida e os próprios limites das fontes de riqueza. É a regra do lucro global que mata o próprio planeta. A conexão das redes de comunicação criou o mundo software. Nessa tecnologia planetária a sociedade se refaz em suas relações e em seus critérios de convivência e de verificação da própria verdade. A sociedade avançou e recriou a vida social, cultural e política com as novas tecnologias de comunicação, mas recuou para modos de vida anteriores ao que a modernidade adotou como regra de vida comum. O individualismo rege não somente a cultura de consumo como parâmetro absoluto, mas também a consciência da verdade. A consciência software se impõe como território líquido que dispensa e evita a distinção entre a verdade e a mentira e tem seu último lastro no imperativo categórico emanado do individualismo: agir de acordo com o que satisfaz a cada eu. A verdade se torna mentira e a mentira se torna verdade, na medida em que a regra da homofilia vai regendo as relações sociais virtualizadas nas redes sociais. A humanidade recua para a fase sectária que nega o outro como desnecessário e adota o mito como fonte de suas verdades. Nas redes virtuais, toda mensagem e torna verdade desde que proceda de uma autoridade adotada como mito redentor.


É nesse contexto que a ciência e a ética se mostram urgentes como realidades comuns e objetivas que possam regrar a convivência humana mundial e local. Nessa liquidez geral os grandes mestres podem ser estrelas-guias, referências de vida e de verdade que conclamam para a vida comum. Os quatro centenários brilham nesse céu nublado e apontam para outro mundo possível. De nossa parte continuamos aprendendo de novo as verdades que podem conduzir a vida comum do planeta. E Freire nos relembra: “Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre”.


O Papa Francisco nos fala em sua última Encíclica, Fratelli tutti, da importância da consciência histórica que em nossos dias vem sendo esvaziada pelos poderes dominantes como forma de colonizar as consciências. A memória de nossos centenários no ensina a não esquecer o passado e fazê-lo presente em um contexto histórico que regride para modos de vida já superados:

 

Reacendem-se conflitos anacrônicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais. Isto lembra-nos que “cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o caminho. O bem, como, aliás, o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia. Não é possível contentar-se com o que já se obteve no passado nem instalar-se a gozá-lo como se esta situação nos levasse a ignorar que muitos dos nossos irmãos ainda sofrem situações de injustiça que nos interpelam a todos.


É preciso afirmar sempre de novo o que a humanidade construiu como parâmetro de vida comum. A consciência histórica é vigilância do presente e não repetição do passado. Esse é o significado de todo ato de rememorar e de celebrar fatos e personagens do passado. Celebrar os 100 anos desses líderes é atualizar os grandes ideais da humanidade por eles vivenciados e pregados, não como repetição do passado e nem como exaltação mítica de heróis dignos de altares e galerias de ilustres, mas como busca de um mundo mais justo e fraterno. O passado retomado afirma valores no presente em um ato de construir de novo o que a humanidade adotou como verdadeiro, bom e belo para si mesma, seja por vias religiosas, seja por vias políticas secularizadas. O mundo continua necessitando com urgência desses grandes homens; de suas críticas e criatividades, de seus métodos e de suas esperanças.


Esse é o propósito dessa singela homenagem do presente número de Ciberteologia aos quatro centenários. E nesse mesmo intuito de honra e celebração não poderíamos esquecer uma mulher também ilustre que marcou a historia das Irmãs Paulinas e da igreja do Brasil, Irmã Maria Alba Veja Garcia. Ciber faz memória a essa religiosa inesquecível na seção Notas e republica com carinho o último editorial que escreveu para a Revista Família Cristã. Partiu como todos partem, sofreu como muitos sofrem e amou como muitos amam. Seu percurso como profissional da comunicação é um exemplo de busca da verdade por meio das narrativas construídas nos meios de comunicação.


Para dar cada dia qualidade à vida humana, requer-se, de cada pessoa e da sociedade, o respeito com o conjunto de tudo o que nos rodeia (Ir. Maria Alba).

 

João Décio Passos
Editor

 

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