Cristianismo e sexualidade | Editorial | Ciberteologia - Revista de Teologia e Cultura

EDITORIAL

A evolução das espécies produziu os seres sexuados na sua longuíssima temporalidade de diversificação da vida na terra. A polaridade masculina e feminina fez parte da invenção da vida que foi se complexificando e ganhando estruturas cada vez mais robustas e autônomas. O que antes no universo celular se reproduzia por desdobramento de um “feminino” universal foi adquirindo estrutura bipolar, de forma que a necessidade do contato/encontro entre as duas seções vivas distintas tornou-se a regra de perpetuação dos seres mais complexos.

As espécies animais são sexuadas, divididas em duas secções (sexus) e só se reproduzem a partir do encontro das duas partes cortadas (secare, do latim = dividir, cortar). A vida sexuada é necessariamente contato com as diferenças, incompletude que se completa para gerar o novo ser. O mito grego do andrógino original expressa simbolicamente essa realidade primordial da espécie. Na narrativa, este ser completo queria invadir o céu e como castigo Zeus o cortou ao meio, criando o ser sexuado que somos hoje. O desejo de se colar de novo nunca mais nos abandonou. Para alguns exegetas, na narrativa javista da criação (Gn 2,21-22) a mulher feita da costela (Tzela = lado em hebraico) do varão é um resquício dessa mitologia. Contudo, o que na mitologia grega é castigo, na hebraica é presente do Criador.

Estas interpretações da sexualidade têm suas ancoragens em antropologias mais negativas ou positivas sobre a condição humana concreta. E, como se sabe, a criação boa da cosmovisão hebraica foi soterrada por uma antropologia grega da decadência material, sobretudo a partir do contato com o neoplatonismo. O fato é que a condição sexual está como outras dimensões da espécie humana enquadrada em um universo interpretativo que revela os diferentes modos de encarar este instinto e de dar a ele um lugar julgado necessário para a convivência humana. A divindade autora dos sexos vai oferecer as regras de controle sobre o seu significado e o seu correto exercício nas relações sociais. As culturas foram constituídas com este ingrediente natural; não puderam ignorar nem sua força positiva e nem seu poder destrutivo, quando vivenciado como desejo que se renova e, por isso mesmo, insaciável. O fato é que as divindades nunca deixaram de regrar a vida sexual, embora possam exigir as mais variadas vivências: prostituição sagrada nos ritos de fertilidade, regras heteronormativas para as relações sexuais, castração de sacerdotes, proibição de incestos, celibatos para homens e mulheres, práticas poligâmicas ou monogâmicas, fidelidade conjugal etc.

O que nas espécies animais não racionais é, via de regra, regulado pelo instinto, em nossa espécie a cultura assume um controle não menos rigoroso. Os interditos sexuais acompanham o Sapiens desde que se tem notícia, das regras matrimoniais até os rituais de castração em alguns sistemas de crença. Sexo exigido, liberado ou proibido. Porém, sexo sempre controlado por uma lei superior. A cada sistema de crenças uma regra de controle do incontrolável desejo de copular com algum parceiro/parceira. A relação entre prazer-cópula conhece seus primeiros controles nas normas religiosas. As regras matrimoniais foram institucionalizadas a partir destas referências narradas pelos mitos de origem (antropogonias), ritualizadas nas cerimônias e regradas pelas normas morais. O processo civilizador se encarregou de construir os meios de controlar o que os instintos solicitam pelo princípio do prazer.

Com efeito, a condição genética e estrutural de grande parte das espécies vivas e de todos os animais não parece ter sua justa correspondência como construção cultural na espécie Homo, ou seja, como significação universal do que determina a vida animal. Convivem em um paralelismo até agora irreconciliável o mecanismo biológico determinante da espécie homo e as interpretações inânimes sobre os mesmos. De um lado, o dado mais universal imediato e revelador do que somos, de outro as significações que o ocultam na intimidade como tabu social e, até mesmo, como obsceno e como porta do pecado. A sexualidade demarca o antagonismo mais nítido entre o natural e o cultural, entre o necessário e o esbanjado, entre o mais desejado e o mais evitado, entre o inevitável e o evitável. Os controles culturais sobre os instintos sexuais instauram uma ambiguidade nas sociedades, um desconforto entre os desejos e as normas. Não há uma sequência harmônica entre instinto-desejo e entre desejo-norma que seja capaz de fundamentar a convivência dos distintos desejos no interior da mesma sociedade feita de sujeitos iguais. Os direitos iguais constituem, ainda, um horizonte utópico que carece de consensos reais e, ainda mais, de traduções políticas e legais. Os mitos de origem da heterossexualidade produziram e produzem heteronormatividade desde o mundo antigo, deixando em desamparo os indivíduos homossexuais. Os gregos encontraram uma explicação natural para eles. O hebraísmo e, mais tarde o cristianismo, vieram neles um desvio da natureza criada por Deus: expressão da decadência da natureza, comportamento intrinsecamente mal.

É neste enquadramento paradoxal que os desejos e práticas homossexuais foram interpretados pelas culturas e, de modo proibitivo, nas tradições semitas. Em nossos dias, a heteronormatividade destas fontes, de modo particular na matriz cristã, constitui uma das questões mais cruciais quando elas se confrontam com a emergência social, política e cultural dos sujeitos homossexuais, de modo crescente nas nações ocidentais. A condição natural e revelada da polaridade masculina e feminina deixa exclusivamente ao sabor da luta histórica a busca de direitos iguais dos sujeitos homossexuais. Desamparados pelos mitos, desamparados pela natureza boa criada por Deus, os homossexuais avançam na busca de um lugar cidadão na história. Mas, mais que essa discrepância entre os direitos sociais e o ordenamento moral cristão que acompanha regularmente a história das tradições cristãs, trata de uma polarização visível no contexto ocidental. Ao que parece, a crescente afirmação dos direitos homossexuais no âmbito secular é seguida proporcionalmente pela homofobia religiosa (cristã, bíblica e eclesial), postura que extravasa os territórios estritamente religiosos e busca traduções políticas e legais nos parlamentos e nas cortes jurídicas.

Cristianismo e homossexualidade se mostram, assim, como polos muitas vezes opostos e, para o senso comum, como práticas irreconciliáveis. Trata-se de um território ainda minado para o mundo cristão que se edifica não somente sobre fontes escriturísticas, mas também sobre tradições que leram essas mesmas fontes. A ideia consolidada de uma oposição irreconciliável entre a moralidade cristã e a experiência homossexual se inscreve na longa duração das tradições judaica e cristã, sendo que deste acervo retira normas morais para a convivência de seus fiéis. Mas, a cultura ocidental recebeu e reproduziu igualmente estes valores. As visões homofóbicas alojadas nas sociedades atuais são heranças morais dessas fontes milenares, embora nem sempre a elas se refiram um modo consciente e deliberado. Contudo, como as ideias não costumam mudar as condições humanas reais, a homossexualidade permanece no seio do cristianismo como um desafio às soluções legais e às doutrinais simples, recebidas e transmitidas na longa temporalidade. A teologia se encontra perante este dado histórico com sua missão de reler permanentemente as narrativas, as normas e os costumes de forma a superar os anacronismos, os fundamentalismos e as simplificações.

E a distância entre a moral cristã e a história atual se amplia, na medida em que os homossexuais vão se assumindo como tais e se organizando em movimentos sociais, vão conquistando espaços social e político, assumindo a posição sujeitos de direito e conquistando o direito civil de se unirem como casais. A distância se revela mais aguda quando a discriminação homossexual se torna ilegítima e criminosa e a homossexualidade deixa de ser considerada uma doença a ser curada por terapias. A doutrina cristã, ao menos a doutrina tradicional, vai adquirindo não somente uma condição de superação, como também de narrativa que favorece o preconceito e, até mesmo, a criminalização. A solução clássica de transgressão da natureza e, portanto, de prática pecaminosa e o reforço moderno de desvio de personalidade (doença) já não gozam mais do conforto de antes. Nem crime (direito de ser, cidadania), nem doença (tendência de personalidade). Essa consciência que vai se tornando cada vez mais comum traz consigo um agravante para a moral cristã tradicional, quando as explicações científicas se confluem para a afirmação da homossexualidade como tendência inata, portanto de uma condição natural na espécie humana. A tradução moral é imediata: se se trata de algo natural não cabe mais a doutrina do desvio intrinsecamente mau por ser uma transgressão da natureza. Por essa razão, o parâmetro moral da “lei natural” se encontra, ao que tudo indica, em um beco sem saída.

O campo minado da questão homossexual foi configurado desde as origens do grupo de seguidores de Jesus Cristo, herdeiros diretos da moralidade judaica, mas não menos banhados tanto das referências éticas das escolas gregas, assim como da moralidade comum do mundo Greco-romano. Talvez o próprio cristianismo já tenha nascido em um território minado, onde a questão parece ter sido evitada ou, então, não tenha sido considerada relevante para os autores dos Evangelhos e, até mesmo, pelo Apostolo Paulo que insere a temática no âmbito mais amplo da idolatria (Rm 1,24-26). Falta, de fato, no Novo Testamento uma referência exclusiva e direta, como se pode extrair de Levítico (Lv 18,22; 20,13). Sem dúvidas, o texto paulino faz um confronto entre a moral judaica que condena explicitamente a prática homossexual e a moral helênica que permitia a prática no espaço dos cultos e da vida cotidiana. Além do mais, o Apostolo lança mão do conceito de lei natural, já bem formulado pela tradição estoica na qual se inseria.

O silêncio dos autores dos Evangelhos é eloquente e faz emergir perguntas, talvez sem repostas. Como Jesus de Nazaré teria encarado a questão no âmbito da moralidade judaica? Para os autores neotestamentários a homossexualidade era uma temática moralmente resolvida a ponto de dispensar mencioná-la nas narrativas sobre Jesus e, antes, nas orientações paulinas? Ou, na posição inversa, teria sido uma temática tão espinhosa para os seguidores do Mestre a ponto de ser evitada de maneira direta? Não faltarão hipóteses de trabalho para os analistas dos textos dos Evangelhos.

Mas o texto paulino acima referido oferece de forma muito sucinta aquilo que o edifício moral cristão construiu na sua longa temporalidade: a consideração de que a prática homossexual é uma aberração antinatural e, por essa razão, considerada um pecado. Foi, de fato, a partir da categoria “lei natural” que as normas e as reflexões morais foram construídas na história do cristianismo. E mesmo para a tradição protestante que abandonou deliberadamente as categorias gregas, a ideia de perversão da criação natural divina tem sido adotada no decorrer da história e adquire hoje formulações e posturas radicais entre os cristãos fundamentalistas.

A leitura fundamentalista retira da textualidade bíblica suas referências normativas. Não se trata, evidentemente, de uma leitura literal e neutra, mas, como toda leitura, é feita a partir de pré-conceitos, como explica o filósofo Hans-Georg Gadamer. Os pré-conceitos constituem os pressupostos que todos possuem e que, condicionam as interpretações perante as mensagens recebidas. Neste sentido, toda leitura é seletiva, jamais neutra, ou seja, centrada na objetividade do texto. A leitura de um texto bíblico não está, assim, isenta de critérios que permitem escolher e rejeitar, destacar ou relativizar, universalizar e particularizar, explicitar ou ocultar determinadas passagens bíblicas. O recurso às fontes bíblicas para justificar a condenação à homossexualidade é recorrente entre os adeptos da leitura bíblica fundamentalista, leitura que avança com força para os espaços públicos, por meio de jargões e de condenações da malfadada “ideologia de gênero”. O princípio da escolha seletiva feita a partir dos pré-conceitos consolidados na visão dos leitores se mostra ativo nessas posturas e operação político-religiosas. O sujeito homofóbico faz leitura homofóbica da bíblia. O machista faz leitura machista. O intolerante faz leitura intolerante, e assim por diante. A seleção de passagens bíblicas não pode ser transformada imediatamente em norma de conduta atual ou em critérios de julgamento moral. É preciso discernir os significados textuais e sintonia direta com o discernimento da realidade atual e vice-versa.

Neste sentido, a teologia tem um papel de discernimento crítico da realidade presente e das fontes da fé e um papel criativo de confrontar os dois polos. Desta função não pode ficar de fora nem os textos bíblicos e nenhum aspecto da realidade presente. Vale lembrar o que ensina o Vaticano II sobre o discernimento dos sinais dos tempos no número 44 da Constituição Gaudium et spes: a) como dever de todo povo de Deus, dos pastores e teólogos; b) como ato de ouvir, discernir e interpretar as várias linguagens de nosso tempo; c) como julgamento da realidade feito a partir da Palavra de Deus e com a ajuda do Espírito Santo; d) com o objetivo de que a própria Verdade revelada seja melhor compreendida e apresentada de modo mais conveniente.

A tarefa de discernimento da realidade presente a partir da Palavra e desta a partir da realidade constitui a essência deste método. Dessa forma, as “linguagens de nosso tempo” devem ser acolhidas e discernidas em cada época e lugar. As linguagens sobre a homossexualidade não estão fora dessa tarefa metodológica que exige pensar e repensar ao mesmo tempo o presente (a emergência social, política e jurídica dos sujeitos homossexuais) e o passado da longa tradição, cujo coração reside na Palavra revelada. Em continuidade direta com esta orientação conciliar, posiciona-se o Papa Francisco, quando afirma que a homossexualidade não é crime e nem doença(mas condição humana) e afirma que o pecado a que possa estar relacionada deve ter como critério fundamental a caridade (entrevista à Associated Press em 25 de janeiro de 2023). Em poucas palavras, o Papa recoloca a temática no seio da Igreja, para além das doutrinas morais fixas, dos tabus e dos preconceitos.

A emergência dos sujeitos homossexuais não pode despertar teologias homofóbicas, sob pena de traição dos ensinamentos conciliares, mas, antes, dos ensinamentos de Jesus de Nazaré. Ao contrário, deve ser acolhida como um dado da realidade presente a ser discernido, ou seja, colocado em uma circularidade com as fontes bíblicas. A mútua relação entre as fontes reveladas e a realidade presente produz interpretações mais “convenientes”, conforme ensina o Concílio na referida passagem. E, de novo, Francisco nos ensina quando interrogado novamente sobre a questão; convida a “olhar para Jesus” no momento de considerar os homossexuais. É da prática e do ensinamento radicalmente inclusivo e misericordioso de Jesus que se deve retirar o critério de julgamento da relação dos cristãos com todos os sujeitos, de modo particular com os sujeitos excluídos.

Ciberteologia acolhe o desafio de entrar neste território ainda minado, apesar de ética de Jesus e apesar dos avanços políticos da sociedade atual. Os Artigos oferecidos são aperitivos de uma problemática ampla e complexa a ser inserida na reflexão acadêmica e na vida das comunidades eclesiais. São reflexões que resgatam experiências e debates que desafiam a reflexão da fé; experiências reais que exigem revisão das posturas morais e, até mesmo científicas, que isolaram a homossexualidade como tabu e contribuíram com as expressões homofóbicas que se encontram ainda hoje em plena operação. “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há macho e fêmea, pois todos vós sois um, em Cristo Jesus” (Gl 3,28).


João Décio Passos

Editor

 

 

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