EDITORIAL
O processo sinodal sobre a sinodalidade na Igreja, instado e instaurado pelo Papa Francisco, foi concluído do ponto de vista de um marco consensual para o conjunto da Igreja. Como processo há que destacar os efeitos do antes, do durante e do depois das duas Sessões sinodais (2023-2024) e, de modo inédito, a relação entre os resultados dos quinze Grupos de trabalho e o Documento final. A confluência entre os dois resultados passará, por certo, pelas mãos do pontífice. Como a era pós Francisco vai proceder a esse respeito, ainda não se sabe e faz pensar em uma recepção mais complexa das decisões e do processo de recepção da sinodalidade. As duas frentes de ação sinodal evidenciam a dimensão ampla do processo em curso na Igreja, para além das duas Sessões sinodais e também para além do documento final. Qual seria o método de divulgação e oficialização para o conjunto da Igreja? O papa, ainda no hospital, traçou uma agenda para a implantação das decisões sinodais em toda a Igreja. A agenda de trabalhos assegura a continuidade do processo, embora dependa de toda Igreja à sinodalidade.
Muito embora Francisco tenha devolvido ao Sínodo sua palavra própria como magistério, o que se concretiza no Documento final chancelado por ele como magistério papal, a perspectiva de uma fase de recepção do princípio e do propósito da sinodalidade como tarefa de toda a Igreja introduz um novo método semelhante ao que se entendeu das reformas conciliares. Como a era das reformas conciliares foi entregue ao conjunto da Igreja, a era sinodal está entregue ao povo de Deus. Nesse sentido, a conclusão do Sínodo não será mais que o começo de uma nova fase de uma grande tarefa de construção da comunhão e da participação eclesiais. A sinodalidade deverá ser praticada estrategicamente, naturalizada como costume eclesial e traduzida em regras de participação e gestão eclesiais.
Desde o Vaticano II, a Igreja não havia sido tão envolvida no conjunto dos fiéis em um processo tão desafiante que excitou as expectativas e fez confluir emoções positivas e negativas em relação às necessárias mudanças eclesiais. A sinodalidade na Igreja foi debatida durante o evento: seriam, de fato, dimensão e dinâmica inerentes à natureza da Igreja? Ou seria apenas uma postura pastoral a ser adotada nas práticas como algo politicamente correto? Esta parece ter sido a questão central que dividiu as posições entre os defensores da conservação e da renovação. Nada de novo sob o sol da Igreja Católica, que agrega de forma tensa o carisma do Evangelho e a organização institucional milenar, a consciência da igualdade dos inseridos no mesmo corpo e a constituição hierárquica. Na primeira postura, a comunhão se faz na participação e sem ela sequer pode haver autêntica Igreja. Na segunda, a diferença estrutura o próprio corpo de alto a baixo e cada diferença ajustada na ordem hierárquica tem uma participação com mais ou menos poder. Os poderes diferenciados se complementariam dentro do mesmo corpo e dispensaria a sinodalidade como princípio comum e transversal. Vivenciamos a mesma luta pelo sentido do Vaticano II: teria sido um Concílio que mudou a doutrina da Igreja ou apenas um Concílio pastoral? Para a leitura conservadora, as reformas conciliares teriam mantido a mesma eclesiologia na sequência da longa tradição; a categoria eclesiológica “povo de Deus” seria apenas uma imagem, a constituição Gaudium et spes não teria significado doutrinal, apenas pastoral. A sinodalidade traduz o espírito e a letra da reforma conciliar no tocante à consciência e visão eclesiais. A Igreja, comunhão dos batizados, povo de Deus é feita de distintos sujeitos eclesiais que nessa condição se define pela participação. Ninguém autoriza, delega ou controla a missão dos sujeitos nesse mesmo corpo feito de membros distintos. E assim como no Concílio, as resistências às mudanças recorreram às fontes teológicas (não consta das fontes bíblicas) e à argumentação da prudência (a Igreja ainda não está madura) para evitar as mudanças estruturais, mesmo que as possibilidades constem das fontes bíblicas e haja um clamor pela hora da mudança. A tendência de preservar o mesmo corpo institucional – na sua forma milenar – e renovar os discursos parece ter sido a saída milenarmente praticada. Afirmou-se e, até mesmo, aprofundou uma eclesiologia da comunhão – dos iguais – dentro de uma Igreja intocável em sua estrutura hierárquica. A estabilidade organizacional prevaleceu sobre a reforma, a hierarquia sobre a sinodalidade. O clericalismo foi constatado como vício perverso a ser superado, embora a teologia do sacerdócio tenha permanecido como referência e fundamento dogmáticos do poder sagrado distinto dos leigos. Os leigos que tiveram voz ativa na assembleia sinodal, permaneceram como um sujeito sem poderes decisórios, fora dos postos centrais da ordem católica. Foi reconhecido o machismo da cultura e da organização católica, embora a mulher, exaltada em sua condição feminina, tenha permanecido onde sempre esteve: fora dos ministérios hierárquicos.
O Sínodo afirmou com vigor as virtualidades da eclesiologia conciliar e perpetuou suas inseguranças e a estrutura estável e imutável da Igreja, entendida sempre como de origem divina: sacerdócio de origem divina, hierarquia de origem divina, ordenação de varões de origem divina etc. As cristalizações da tradição e da instituição católicas constituem a infraestrutura que determina os rumos da reflexão e, mormente, de qualquer decisão que coloque em risco sua permanência. A cultura da manutenção é intrínseca à cultura católica com seu modus operandi político. Embora o processo sinodal tenha, de fato, aberto uma era de debates e proposições de mudança no conjunto da Igreja, esbarrou na muralha intransponível da instituição autossacralizada. Nesse regime de preservação, a regra é sempre a adaptação do novo no velho. Sob essa regra pétrea se agregam os conservadores que negam todas as reformas como perigosas por si mesmas e os tradicionais que defendem a manutenção de uma tradição que vincula de modo fixo e imutável o presente ao passado. Juntamente com os Concílios, os Sínodos ensinam que a tradição e a doutrina não estão concluídas, mas, ao contrário, estão sempre em processo de construção no decorrer do tempo. A história da teologia, da doutrina e do dogma comprova por si mesma essa verdade, ainda que ela cause temores nas consciências conservadoras assentadas sempre sobre a convicção da imutabilidade dos modelos. E ao propor metodologias participativas para todos os sujeitos eclesiais sinodais e afirmar que nas assembleias sinodais nada está proibido de ser discutido, Francisco confessa o princípio do consensus ecclesiae e, portanto, a consciência da historicidade da Igreja com seu magistério. A ilusão conservadora de um modelo de cristianismo e de Igreja que nasceram prontos e que seguem de modo intacto pela história afora é a expressão de ignorância histórica, de mitificação do passado, de deficiência teológica e de dogmatismo sem fé. A construção da sinodalidade na Igreja choca-se com a visão da estabilidade que ainda prevalece nas mentalidades eclesiais, de modo decisivo na consciência dos que ocupam postos centrais na hierarquia. Para os vigilantes da tradição que, no fundo, vigiam seus próprios postos, repensar estruturalmente as funções e relações eclesiais será sempre uma ameaça à preservação do que supostamente não pode ser modificado. Por ora, a palavra de orientação imediata do Sínodo está com o Documento final. Ainda que se mostre limitado em muitos aspectos e possa decepcionar os que esperavam decisões mais ousadas do ponto de vista da cultura, da política e da estrutura eclesiais, o Documento pode ser entendido como uma “porta aberta” por onde ainda passarão novas decisões a serem formuladas e tomadas de agora em diante. Aliás, a sinodalidade deverá ser um processo permanente que exige construção permanente e não uma norma fixa a ser acatada e reproduzida pelo conjunto da Igreja. O espírito do Documento indica a perspectiva mencionada de uma era sinodal aberta para toda a Igreja. A recepção do espírito sinodal é uma postura de fé que deverá traduzir-se em posturas e estruturas eclesiais sempre renovadas. A atitude mais perversa a ser evitada é a espiritualização que dispensa as traduções concretas, onde a criatividade e a ousadia estarão presentes.
Essa atitude costuma rondar a cultura católica por meios dos conservadorismos que, em nome de uma falsa harmonia/unidade supostamente desejada por Deus, bloqueia toda renovação. A postura sinodal exige o protagonismo das comunidades e sujeito eclesiais. O impulso dado por Francisco para que os discípulos missionários “primeireiem”: “A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. Jo 4,10) e, por isso, ela sabe ir à frente, tomar a iniciativa sem medo...” (Evangelii Gaudium 24). Tomar a iniciativa sem medo exige superar com o reprodutivismo autoritário que só coloca em prática aquilo que for promulgado do ponto de vista canônico. Nessa lógica da obediência, a sinodalidade pode terminar numa convocação bela, espiritual e ritual, porém sem efeitos práticos na rotina eclesial assentada em sua tradição e estruturas milenares. O clericalismo é o nome católico dessa postura que exige obediência legalista de uma norma instituída e somente a ela. O que significar criatividade e, portanto, construção local torna-se estranho e, muitas vezes, ilegítimo. Por esta razão, o clericalismo constitui o maior obstáculo para a recepção da sinodalidade por parte das Conferências Episcopais, das Igrejas locais e das comunidades eclesiais em todas as suas esferas. A sinodalidade é um convite ao exercício efetivo da subjetividade eclesial, entendida como sujeito coletivo (todo o povo de Deus) e como sujeito individual (cada batizado em pleno exercício do sacerdócio comum dos fiéis). Embora esta não constitua uma novidade, desde a eclesiologia conciliar e, sobretudo, a partir das experiências eclesiais latino-americanas, permanece um desafio para a Igreja como um todo. O individualismo espiritual e o tradicionalismo, cada vez mais aliados como performadores de um comportamento eclesial passivo e obediente-autoritário, dispensam a consciência e a prática da sinodalidade. Numa Igreja onde tudo se encontra concluído e fixo, não há nada a construir, as mudanças são sempre vistas como perigosas. Onde uma autoridade religiosa é praticada como poder sagrado centralizado, detentor da verdade e da mediação com Deus, a sinodalidade se mostra como um empecilho para o exercício do poder sagrado. Nesse solo estável a sinodalidade cai como semente que pode fecundar ou morrer por inanição. E não bastará repetir a narrativa oficial ou mesmo um desejo abstrato de mudança, como uma espécie de espiritualidade sem métodos de encarnação. A sinodalidade exige, sem dúvidas, conversão, mas, sem prejuízo, e ao mesmo tempo novas posturas que modifiquem as práticas e as estruturas. Na cultura da estabilidade católica e na estrutura de poder hierarquizada e centralizada, as mudanças costumam ser acolhidas como discurso que ganha intensidade, sem, contudo, levar a transformações. Por outro lado, a inevitável rotinização que fará exceção ao processo de recepção sinodal, sobretudo, na era pós-Francisco. Embora o papa afirmasse com serenidade a superioridade dos processos de longo tempo sobre os imediatismos políticos, era, por certo, sabedor, dos limites históricos das reformas, sobretudo no final de seu pontificado e, por conseguinte, da urgência de uma institucionalização mínima dos resultados sinodais.
O processo sinodal entregou as reformas inadiáveis da Igreja para o conjunto de seus sujeitos. O futuro das intuições e renovações oferecidas pelo Sínodo dependerá do entusiasmo do episcopado, dos clérigos e do laicato. A batalha da reforma não está ganha nem perdida.
As palavras de ordem do momento serão, por certo, realismo e esperança. Nessa moldura que brota da própria fé cristã, Ciberteologia posiciona-se no interior do momento e se pauta com as reflexões que compõem o presente dossiê. Os Artigos estão alternados entre sínteses e análises de documentos e do processo sinodal e em considerações sobre a recepção da sinodalidade no conjunto da Igreja. Visam demarcar o momento histórico-eclesial, documentando e discernindo o processo sinodal. O dossiê conta com contribuições de participantes da Assembleia sinodal, testemunhas oculares e sujeitos ativos do processo que se disponibilizaram a contribuir com suas análises e testemunhos: Agenor Brighenti e Sônia G. de Oliveira. Agradecemos aos dois sujeitos sinodais e a todos os autores que contribuíram com suas reflexões sobre o desafiante momento histórico que vivenciamos na Igreja. O número oferece também uma reflexão sobre a recorrente questão das distinções e relações entre teologia e ciência da religião.
É em sintonia com os propósitos de Francisco e na esperança da continuidade de suas intuições que Ciber oferece a seus leitores o presente dossiê.
“O caminho sinodal da Igreja Católica, animado também pelo desejo de prosseguir o caminho rumo à unidade pela e visível dos cristãos, ‘precisa que as palavras partilhadas sejam acompanhadas de fatos’” (Papa Francisco).
João Décio Passos
Editor