EDITORIAL
Os regimes autoritários se estabelecem construindo opositores reais ou imaginários e buscando eliminá-los como inimigos universais da humanidade da qual se julgam legítimos vigilantes e, até mesmo, únicos representantes. Os regimes autoritários não subsistem sem dogmas e sem crentes; sem bem e sem mal. Eles são estruturados a partir de uma lógica que pode ser denominada totalitária: como sistema autorreferenciado, autossuficiente e onipotente. Esta totalidade se impõe como única verdade e única possibilidade de superação do caos iminente onde habitam os inimigos da salvação nacional. A lógica do totalitarismo foi exposta por Hannah Arendt, logo após a tragédia da segunda guerra. Dentre outros mecanismos, a filósofa expôs a construção dos inimigos que, uma vez definidos, tornam-se os bodes expiatórios a serem eliminados por encarnarem o perigo fatal para os grupos de adeptos do regime. Foi assim que os judeus foram sendo considerados os inimigos da Alemanha e da raça humana pura. Na mesma época e com a mesma intenção de entender a lógica do nazifascismo, o psicólogo estadunidense Gordon Allport construía sua escala explicativa da ascendência da intolerância, tendo como ponto de partida a separação entre o endogrupo e o exogrupo. Desta separação primeira se eleva a escala do preconceito e da intolerância que, segundo explica o autor, se conclui com o genocídio. A violência que começa com a linguagem separatista – as narrativas que discriminam – se conclui com a morte do opositor.
A humanidade construiu seus consensos sobre a convivência comum, na medida em que as civilizações garantiam a igualdade mínima de direitos a todos os indivíduos e grupos, superando a visão tribal autocentrada, o que, concomitantemente, tornava a igualdade um valor fundamental e superava a lógica da violência naturalizada e institucionalizada. Para o historiador Léon Poliakov assim como para o antropólogo René Girard o mecanismo da violência que busca os responsáveis pelas desgraças do grupo faz parte da espécie humana em evolução histórica, para o primeiro a história pode ser escrita a partir dos bodes expiatórios, dos inimigos eleitos para serem eliminado. René Girard vai além da constatação histórica e explica o mecanismo a partir do desejo humano que gera a luta pela posse do mesmo objeto, na medida em que cada qual deseja o que o outro deseja. O resultado é a violência que pode sucumbir o grupo. Os bodes expiatórios encarnam em si os males e sua eliminação soluciona a violência grupal, ao produzir uma catarse coletiva. Em todos os casos, a humanidade necessita de bodes expiatórios para solucionar a violência que reside no mecanismo mais básico do desejo.
O martírio pode ser compreendido dentro desse mecanismo violento. Quase sempre o martirizado é um inimigo a ser eliminado para solucionar um problema – real ou imaginário – em determinados grupos. Ele é sempre um estranho perigoso e sua eliminação liberta o grupo do risco iminente de crise fatal ou de dissolução. A descrição do martírio de Jesus na cruz revela a teologia judaica do dia da expiação, quando se dava o ritual do bode expiatório no templo de Jerusalém, conforme narra o livro de Levítico (16,7-19). A cena da crucifixão descrita pelo evangelista Mateus (27,21-25) revela de modo claro esse mecanismo. Pilatos conduz o julgamento para um ponto final quando, então, demonstra saber que o grupo exige um bode expiatório escolhendo Jesus para ser crucificado. Já sabia que “haviam entregado Jesus por inveja”. A escolha já estava feita e não poderia ser substituída por outra vítima, no caso Barrabás. Não se tratava de uma questão de justiça (da escolha entre um inocente e um culpado), mas de uma satisfação para o grupo ávido de vítima expiatória. A relação entre “inveja” violência e expiação fica declarada com impressionante clareza. Assim como no ritual de expiação, aparece a figura da purificação com água, após o sacrifício. (Lv 16,4). Pilatos lava as mãos e diz não ser “responsável pelo sangue desse homem” e parece indicar, desse modo, ter consciência de que se trata de um mecanismo expiatório da turba ensandecida: “É um problema de vocês”. A vítima expiatória é sempre um problema do grupo que deseja ser libertado dos pecados e das culpas. A resposta do povo é conclusiva para a compreensão da expiação em jogo: “Que o sangue dele caia sobre nós e sobre os nossos filhos”. A sequência inveja-violência-expiação fica bem clara na descrição mateana da cruz e explicita o mecanismo desvendado por René Girard em sua teoria geral.
A violência nasce da inveja e mata aqueles escolhidos para aliviar o grupo do medo e do perigo. O martírio é, nesse sentido, a morte necessária que não pode ser evitada por nenhuma razão; os argumentos racionais para evitar a morte são inúteis perante o estado emocional dos que se sentem ameaçados e, por conseguinte, imbuídos da missão de matar o inimigo universal. Ser inimigo é pertencer, de alguma forma, aos que se localizam fora do grupo e de suas regras regulares. Mesmo quando o denominado inimigo de fato pertença ao grupo, ele é construído como perigoso e, portanto, como força maligna externa ao grupo. Nesse sentido sacrifical e expiatório podem-se localizar aqueles que foram escolhidos para morrer, os bodes expiatórios de um modo geral, antes de se pensar em uma leitura especificamente cristã, só verificada a partir do século II com O martírio de Policarpo. A que permaneceria é sobre uma necessária teologia subjacente a todos os sacrifícios expiatórios.
Todo mecanismo sacrifical tem sempre uma divindade exigindo sangue ou, mesmo justificando, a eliminação do inimigo? De modo explícito ou implícito, a resposta deverá ser, ao que parece, positiva. As violências e as mortes dos grandes inimigos têm sempre por debaixo do ato expiatório uma perspectiva teológica: de uma divindade que exige ou autoriza a morte. Há, portanto, que perguntar qual é a divindade patrocinadora e a divindade que morre junto com o martirizado. O algoz executa a vítima em nome do grupo e de seu deus e para o grupo é sempre um benfeitor. As vítimas morrem em nome de Deus, clamando por ele, ainda que na condição de herege. Nesse sentido, os sacrifícios expiatórios encenam sempre uma luta de deuses em torno da causa dos vitimadores e dos vitimados.
Para a concepção cristã, o martírio se define como testemunho livre e (embora nem sempre voluntário) de um fiel em nome da fé em Jesus Cristo. Assumir o risco não é desejar a morte, mas enfrentá-la por coerência, ainda que clamando por Deus e, até mesmo, protestando por sua ausência como no caso de Jesus de Nazaré. Não basta ser uma vítima escolhida para a expiação que visa libertar o grupo ameaçado. É preciso assumir o risco da morte ou a própria morte em nome da fé. Este significado se expressa, portanto, no próprio termo martus (testemunho em grego). O mártir morre testemunhando sua fé e posiciona-se no limiar entre a vida terrena e a vida celeste. A conquista do paraíso está em seu horizonte, como prêmio pelo testemunho. O martirizado é, nesse sentido, um vencedor das forças contrárias a Deus, das forças do mal. O cristianismo explicita esta percepção já presente no judaísmo (livro de Macabeus) e vincula o testemunho do eliminado com Jesus, o cordeiro de Deus. O livro do Apocalipse (7,9-17) retrata essa fé entre os que foram mortos nas perseguições do final do século I. O passo seguinte foi considerar o mártir como um intercessor junto de Deus, já que por sua identificação com Jesus crucificado, se encontrava vitorioso junto de Deus. A figura dos santos surge precisamente dessa ligação. Em analogia direta com essa definição cristã, a postura martirial adquiriu significado civil e sem vínculos diretos com o religioso. Aquele que morre por uma causa social e política pode ser, muitas vezes, denominado mártir. Tiradentes é chamado mártir da inconfidência. As nações veneram seus heróis libertadores na perspectiva da vida oferecida pela causa nacional. Aquele que morre assassinado por uma causa política torna-se um herói que emerge da morte como mito que não morre, como força agregadora de ideais políticos.
Nesse sentido, os líderes políticos podem tornar-se mártir quando perseguidos ou mortos, de forma que, suas mortes os potencializam como figura exemplar capaz de arregimentar seguidores. A morte suicida de Getúlio Vargas em 1954 contém esta mesma dinâmica. Em seu famoso bilhete afirma “deixo a vida para entrar na história”. Segue a mesma percepção popular a prisão de Nelson Mandela, as mortes de Mahatma Gandhi e de Martin Luther King. Neste sentido político, a morte do líder potencializa os ideais de grupos seguidores e os unifica em torno de uma causa comum. Faz todo sentido, em todos os casos, a conhecida afirmação de Tertuliano: “o sangue dos mártires é a semente dos cristãos”. O nazifascismo foi construído a partir da engenharia psicossocial dos bodes expiatórios. Como é sabido, os judeus foram os grandes inimigos a serem eliminados. No entanto, membros de outras confissões foram também executados por razões políticas (“éticas”) e direta e indiretamente por convicções religiosas. Aqui o conceito de martírio se alarga mais uma vez. Primeiramente pelo fato da escolha dos que deveriam ser mortos não possuir uma razão propriamente religiosa, mas, sim, uma razão política (éticas e humanas), por discordarem frontalmente do regime. Em outros casos, aquele que se entregou à morte o fez em nome de uma solidariedade radical ao se oferecer para substituir um outro condenado. De modo mais amplo, ainda, o massacre dos judeus, mesmo que imposto aos capturados carrega consigo um elemento sacrificial de eliminação do mal em nome da purificação da raça ariana e da própria espécie humana. E morrer por ser judeu não poderia excluir a condição de fé como povo que pertencia a uma tradição religiosa.
O termo regularmente utilizado para designar o genocídio judaico, “holocausto”, expressa esta conotação bíblica de vítima queimada no fogo e oferecida a Deus como sacrifício. Para evitar essa conotação, o termo Shoah (palavra hebraica que significa “destruição, ruína, catástrofe”) é preferido por muitos para expressar o genocídio arquitetado pelos nazistas com maior exatidão histórica. O nazismo e o fascismo reproduziram de modo massivo e com engenharias modernas os mecanismos de eliminação dos inimigos. As crises econômicas que avançavam desde o final do século XIX e grassavam o planeta no epicentro da grande depressão de 1929, exigiam soluções eficazes e definitivas e lideranças capazes de libertar a Alemanha (e a raça pura), assim como a Itália e outros países do mundo da dissolução final. A solução vinha pela eliminação dos inimigos causadores de todos os males, caso imediato dos judeus, mas também de todos os considerados impuros ou deficientes: os homossexuais, os ciganos, os testemunhos de Jeová, os deficientes físicos e mentais. Na leitura de Léon Poliakov, trata-se do retorno do bode expiatório no novo contexto de crise. E a solução simbólica (a eliminação do inimigo que encarna em si todos os males) adquire legitimidade científica, do contrário não poderiam ser eliminados. As conspirações se apresentam, nessas cenas, como a teoria mais plausível que explica a causa dos males. No caso do nazismo, tratava-se de demonstrar que os inimigos compunham uma raça comprovadamente inferior (nos aspectos antropológico, biológico e histórico) e que, sendo eliminados, levaria a uma solução radical (pela raiz) de todos os problemas. Tratava-se de localizar a causa e solucionar pela causa.
A conclamada “solução final” exigia a completa extinção das raças inferiores. No passado, as narrativas religiosas cumpriam essa função redentora da humanidade. Elas localizavam as causas e ofereciam os rituais solucionadores. Agora no século das ciências as narrativas “científicas” é que ofereciam as justificativas para eliminar os inimigos da prosperidade econômica e do futuro que se apresentava com promessa: mil anos do Terceiro Reich. A nova era anunciada era promessa cientificamente viável e oferecia um novo regime que não era nem democracia e nem socialismo, mas um regime liderado por soberanos autorizados diretamente por seus seguidores. O delírio da crise (indigência), a esperança de solução (eliminando os inimigos) e a promessa verdadeira do líder, motivou e moveu os líderes e seus seguidores na certeza da solução que sustentou a guerra mundial e seus genocídios.
A morte era necessária para purificar o mundo e a humanidade na busca de uma solução definitiva para a crise econômica que se arrastava. Os inimigos eleitos e os que se opuseram ao regime deveriam ser eliminados para solucionar o caos em pleno curso, de modo contundente na Alemanha desde a primeira guerra. Era necessário matar os inimigos para salvar a nação. Neste sentido, seria difícil quantificar o número dos que morreram testemunhando a fé naqueles anos tenebrosos. Alguns casos se tornaram eminentes, sobretudo com os processos de canonização oficializados pela Igreja Católica. Mas para além das notoriedades, os que tombaram testemunhando direta ou indiretamente a fé, mas antes, testemunhando o valor da vida humana, da liberdade política e a igualdade de todos os seres humanos, se inscrevem na lista dos martírios contemporâneos. Quantos ateus não morreram pela causa da igualdade humana quando o nazismo se impunha como regra comum acolhida por milhões de pessoas? Vale recordar que a própria judia Edith Stein (Santa Tereza Benedita da Cruz) se negou a fugir da perseguição nazista em nome da causa de seu povo. Preferiu padecer o mesmo destino dos milhões de mortos, a fugir do Carmelo na Holanda. Quem morreu em Auschwitz foi a judia de número 44.074 e não propriamente a Irmã Tereza.
O martírio da carmelita transcende, portanto, o território da pura compreensão católica e adquire uma dimensão maior que a vincula ao sacrifício de seu povo, embora expresse com coerência sua identificação mística com a cruz de Jesus que levava em seu próprio nome de religiosa. Neste contexto, as zonas distintas dos testemunhos religioso e humano, da política e da fé se borram e se confundem no mesmo sangue derramado pela mesma causa da humanidade. E não podem ser esquecidos os testemunhos dos que sacrificaram a vida na pátria natal e partiram para o exílio como refugiados, dos que perderam suas cátedras em nome da coerência intelectual e ética. O valor supremo da humanidade agregou ecumenicamente testemunhadores de confissões religiosas variadas e até mesmo dos que não professavam fé religiosa. Os mártires do nazifascismo são, antes de tudo, os testemunhos da dignidade humana contra toda ideologia que elimina o humano em seus mecanismos de morte legítima. Aquele que tombou por não abrir mão da dignidade humana recebe no juízo final cristão a sentença redentora: Vinde benditos de meu Pai! Recebei por herança o reino preparado para vós... (Mt 25,34). A fome, o cárcere, a doença, a nudez, o trabalho forçado, a câmara de gás... são as condições que escondem a presença do Senhor em todo sofredor dos regimes nazifascistas e separa os justos dos indiferentes. Os justos que triunfam junto de Deus são os empáticos e os solidários com a humanidade sofredora. Eis a matriz teológica mais contundente que identifica toda vítima com o próprio Deus e os solidários como seus eleitos definitivos.
Nessa chave pode-se aplicar aos inocentes sacrificados pelo holocausto a noção de testemunhas da crueldade humana assumida pela empatia divina que sofre e morre com as vítimas. Oitenta anos depois da grande tragédia mundial, os gritos das vítimas ecoam para todos os que defendem a dignidade humana. Estes gritos não podem perder a intensidade com o passar do tempo; devem ecoar como clamor incessante pela vida e contra as vítimas da força bruta. Os nomes aqui elencados como mártires são memórias e homenagens às vítimas, quando pelo planeta o fantasma do autoritarismo ganha fôlego em diferentes frentes que isolam indivíduos e nações e criam narrativas de ódio. O isolamento e o ódio geram sempre a morte, como insiste o Papa Francisco em sua Encíclica Fratelli tutti (87). Toda prepotência mata como se fosse legítimo matar e, para completar o cinismo, quando instalada em regimes que governam em nome de Deus. Fazer memória dessas vítimas distantes é afirmá-las como testemunhas daquilo que a humanidade é capaz de praticar e deve evitar e condenar para sempre. O clamor das vítimas chega aos céus e ecoa na terra dos homens de boa vontade; ensina que o amor é uma tarefa que deve ser levada adiante em cada geração, que as condições da convivência comum devem ser construídas permanentemente e que as instituições de direito não são nem intocáveis e nem imutáveis. O número atual de Ciberteologia dedica-se a essa questão a partir da chave do martírio. Ainda que não seja simples denominar os milhões de vítimas como mártires, por dentro da tragédia muitos cristãos sofreram a morte por razões de fé, ou seja, como testemunho das exigências cristãs do amor sem medida ao próximo. Muitos destes cristãos foram reconhecidos como mártires e, por conseguinte, considerados santos por parte da Igreja Católica. Com certeza, muitos outros permanecerão ocultos e sem esse reconhecimento. Mas, para além de todos os cristãos, o genocídio judaico permanecerá clamando por justiça pela história afora e gritando pela justiça final que só pode vir de Deus.
João Décio Passos
Editor