O desafio de ser Igreja neste início de século XXI | Editorial | Ciberteologia - Revista de Teologia e Cultura

EDITORIAL

Ciberteologia é um lançamento da marca Paulinas em 2005. Por isso fizemos questão de trazê-lo a público no mês em que comemoramos os 90 anos de presença da missão paulina no mundo, dos quais só o trabalho da editora no Brasil já soma sete décadas e meia. Este número inaugural repercute um pouco da avalancha midiática sofrida pela Igreja católica nos últimos meses. As últimas semanas de vida de João Paulo II, sua morte – seguida das cerimônias fúnebres, o rápido conclave e a repercussão mundial da ascensão do papa Bento XVI deram mostras de um prestígio que, desde muito tempo, se pensava que o catolicismo tivesse perdido.
Porém, se a enxurrada de notícias relacionadas ao acontecimento do ano é inegável, também não é difícil perceber que o destaque jornalístico dado à instituição católica nesse período está longe de ser um espaço criterioso, de reflexões sóbrias e perspicazes, haja vista que as manchetes, por sua própria natureza, buscam o insólito, a polêmica, com aproximações de sabor maniqueísta. Por isso pensamos em oferecer ao cibernauta um número de estreia que, embora afinado com o tema do momento em todas as mídias, lhe garantisse mais elementos de ponderação e análise. Selecionamos, para tanto, alguns textos de nosso acervo editorial que pudessem ilustrar, com maior profundidade, distintas dimensões do desafio de ser Igreja neste início de século XXI.


Não se pode, contudo, falar do cristianismo e dos desafios contemporâneos de seu ramo católico sem ter como inspiração primeira a “boa-nova evangélica” [pedimos excusas pelo pleonasmo inevitável] que lhe está na origem. Fomos buscar esse ponto de arranque em um texto instigante do renomado pesquisador John Dominic Crossan, que aborda O caráter do Deus judeu-cristão. Para Crossan, ainda antes de celebrar a encarnação de Deus, é preciso tratar do caráter dessa divindade, que, como diz o Sl 82, é um Deus de direito e de justiça. Aliás, Crossan considera esse salmo o texto mais importante de toda a Bíblia cristã.

Dois artigos discutem diretamente o tema da onda. Em O conclave: constância e mudanças, Alberto Melloni introduz-nos nas dificuldades e desafios que cercam as normas e a composição, os procedimentos e o perfil dos protagonistas do conclave. Segundo o autor, “o glorioso equilíbrio que o conclave parece garantir entre romanidade e universalidade poderia ser substituído por outros mecanismos e concepções, apesar de uma retórica da imobilidade que louva a sua estabilidade, a continuidade, a perfeita eficácia; e nada disso repercutiria nas instituições cristãs”. Para Melloni, “no século XX, o conclave viveu e sobreviveu assim: não mais como um sistema perfeito, indispensável para uma igreja ameaçada, mas como instrumento discutível e plausível para providenciar o bispo da Igreja de Pedro e Paulo”.
Hervé Legrand retoma, em O ministério do papa, as discussões do Concílio Vaticano II sobre o primado e a colegialidade. No final de Ut unum sint, João Paulo II fazia uma alusão, a única em toda a encíclica, sobre o colégio dos bispos, nos seguintes termos: “Quando a Igreja católica afirma que a função do bispo de Roma corresponde à vontade de Cristo, ela não separa essa função da missão confiada ao conjunto dos bispos, também eles ‘vigários e delegados de Cristo’. O bispo de Roma pertence ao ‘colégio’ deles e eles são os seus irmãos no ministério” (n. 95). Além de ser a única alusão, o termo colégio é colocado entre aspas. O que significa tal discrição? Quais as dificuldades que ainda persistem no diálogo intracatólico e nas discussões ecumênicas acerca do primado petrino? É o que o leitor poderá acompanhar na prudente, embora firme e muito bem documentada apresentação de Legrand. Para ele, a communio ecclesiarum e o collegium episcoporum devem ser analisados juntos tanto no plano teórico quanto no prático: sem isso não se pode levar em conta a história; não se pode nem ao menos enfrentar bem os problemas pastorais dentro da Igreja católica atual; e menos ainda se pode ajudar a encontrar a unidade entre os cristãos divididos. Quaisquer que sejam os impasses encontrados, todavia, o Vaticano II fornece preciosos apoios para superá-los.
Antonio José de Almeida oferece, em Por uma Igreja ministerial: os ministérios ordenados e não-ordenados no “Concílio da Igreja sobre a Igreja”, uma competente aproximação a um tema tão vasto como complexo: os ministérios vistos na ótica do Vaticano II. Analisa detidamente o terceiro capítulo da constituição Lumen gentium e outros três decretos: Christus Dominus, Presbyterorum ordinis e Optatam totius. Em seu estudo, procura evidenciar que a realidade da Igreja, contemplada ao mesmo tempo como mistério, Povo de Deus e missão, é o ponto de partida e o contexto em que os ministérios são abordados no Concílio.

O destaque desta edição é padre Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955). Este ano celebramos os 50 anos de falecimento daquele que foi um dos maiores renovadores do pensamento cristão do século XX. Para não deixar passar em branco a data, Paulinas Editora acaba de lançar Pierre Teilhard de Chardin, uma biografia recentemente escrita por Bernard Sesé, com prefácio de Maurice Ernst, e que se destina ao grande público. Da obra, oferecemos como aperitivo o prólogo de Sesé e o prefácio de Ernst. E para completar a degustação de nosso ciberleitor, buscamos em nossos arquivos um texto publicado por Ursula King há alguns anos, que enfatiza a Espiritualidade na visão de Teilhard de Chardin. Segundo a autora, o tema da espiritualidade é da maior importância hoje em dia. Contudo, o nome do cientista, padre jesuíta e místico francês Teilhard de Chardin raramente é mencionado pelos atuais estudiosos da espiritualidade cristã. Ursula escreveu um livro e vários artigos para tentar corrigir essa lacuna. Aqui teremos um aperitivo do resultado de seus esforços.

A seção Comunicações traz uma reflexão do sempre perspicaz padre João Batista Libanio, Prospectivas teológicas e pastorais do cristianismo na América Latina e Caribe. O texto é uma oportunidade de recordarmos a brilhante palestra que o teólogo jesuíta ofereceu na Conferência do Cristianismo, realizada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em julho de 2003. Na ocasião, padre Libanio ponderava, diante do quadro apresentado, que as posições extremas costumam ser más conselheiras. Tanto a “confiança mágica” na vitória da Igreja sobre as portas do inferno, como a “acomodação fácil à secularização, consolando-se com as presenças anônimas de cristãos”, são soluções ingênuas. Por outro lado, “apostar no peso da Instituição” e “armar um aparato evangelizador, como se prepara a invasão de um país, não passa de nova forma de pelagianismo”. Palavras pertinentes que pedem uma releitura.

A seção inclui, também, o texto que preparamos para apresentar a mais nova coleção de teologia lançada por Paulinas Editora: Ecclesia XXI. O próprio título da coleção –– um termo  grego latinizado acrescido de um 21 “ainda” em algarismos romanos –– já sugere o contexto e os desafios que cobram respostas e atitudes tanto da hierarquia como de todos os membros da comunidade cristã. O novo século iniciou com sinais bastante paradoxais: incrível avanço tecnológico e consenso sobre alguns direitos humanos universais, mas crivado de guerras fratricidas e incremento do terrorismo internacional, do trabalho escravo e infantil, do turismo sexual e da contaminação da natureza. Uma Igreja católica adulta e aberta ao diálogo, a partir da conclusão do II Concílio Ecumênico do Vaticano, atingida por sismos e movimentações restauracionistas que ameaçam comprometer importantes conquistas teológicas e eclesiais do final do século XX. O novo contexto põe, diante de nós, várias perguntas incontornáveis. E esta nova coleção de Paulinas Editora pretende encará-las, consciente de que não são poucos os problemas que se descortinam para uma Igreja que pretenda adentrar o novo século fiel ao espírito de Jesus, aberta ao diálogo, coerente em seu testemunho do Reino e solícita na comunhão com Deus e com o próximo.

Completam o número três resenhas, que destacam livros do rico catálogo de Paulinas Editora. De John Dominic Crossan: O nascimento do cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus; de Giuditta Lo Russo: Homens e pais: a obscura questão masculina; por último, organizada por Faustino Teixeira: A(s) ciência(s) da religião no Brasil, obra importante para a discussão epistemológica que vem sendo travada também entre nós sobre a distinção e complementaridade entre teologia e ciência da religião.

Enfim, nosso desejo é estimular a leitura e a reflexão acadêmicas, colocando ao alcance de público mais amplo um pouco do acervo intelectual, teológico e pastoral que Paulinas Editora acumulou nestes 74 anos de presença editorial no Brasil. Esperamos que seja o início de uma longa viagem, em que contaremos com a participação de todas as pessoas interessadas no incremento da produção e da divulgação do pensamento teológico.


Boa ciberleitura!
Afonso Maria Ligorio Soares
Redator Geral e Doutor em Ciências da Religião

EDIÇÕES ANTERIORES

Utilizamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência, de acordo com a nossa [Política de Privacidade], o que pode acarretar no tratamento de dados pessoais. Ao continuar navegando, você concorda com as condições.