EDITORIAL
Sobreviverá a religião ao século XXI (admitindo-se, é claro, que este século sobreviva à estupidez humana) ou virá, antes, o “eclipse da secularização”? O texto A religião na sociedade “pós-moderna”, de Stefano Martelli, reproduzido nesta sexta edição de Ciberteologia, resume as principais posições a respeito, desde a secularização como reorganização permanente da religião até a dessecularização como persistência da religião sob a modernidade e já além da sua crise. Martelli oferece-nos sete possíveis cenários que delineiam as perspectivas oferecidas à religião neste início de milênio: a estratégia de concentração católica; a eclesiastização do cristianismo; e mais cinco metáforas – do Ocidente; da secularização; da época moderna; da religião civil e da complexidade.
Não é, sociologicamente falando, inevitável o confinamento da religião à função marginal e privatizada a que a sociedade moderna quis reduzi-la. A complexidade interna da religião permite-lhe colher oportunidades novas do clima cultural pós-moderno, e assim flutuar com maior liberdade, em meio a distorções e ambiguidades, entre os fenômenos de secularização e dessecularização. No que tange ao cristianismo, pode ser que essa força de resistência venha de sua própria convicção interna de poder identificar o kairós, conforme sugere Júlio Fontana no artigo inédito Plenitude dos tempos: um estudo contextualizado de Gl 4,4. Que é que Paulo quis dizer com “plenitude do tempo?”, pergunta-se o jovem articulista. Que tem esse momento de tão especial para ser considerado por Paulo como kairós de Deus? Quais condições determinaram o envio do Filho? Ao tentar responder a tais perguntas, o autor abre um leque teológico de sugestões para que se compreenda o renovado vigor cristão neste novo século.
As outras três reflexões oferecidas na seção Artigos são uma clara demonstração da (até aqui) bem-sucedida inculturação da teologia cristã no paradigma hodierno. Deixar que Deus seja Deus é o desafio lançado por Tissa Balasuriya. Segundo esse autor, envoltos no mistério da vida humana, muitas vezes apelamos a Deus para explicar nossa existência e suas vicissitudes e o entendemos como poder infinito. No fundo, temos a tendência de apresentar Deus da maneira que nos agrada. Mas agora que nos tornamos mais críticos em relação às ideologias e também às religiões, Deus vem assumindo uma posição central entre os temas da pesquisa teológica.
Muitos cristãos deixaram de “praticar” a religião, tornaram-se “sem Igreja”, mas continuam crendo em Deus. Outros preferiram o ateísmo. Há, ainda, os que prosseguem em busca. Neste artigo, Balasuriya pretende, a partir da tradição cristã, contribuir com a busca de uma significativa teologia de Deus. Nesse mesmo espírito insere-se o artigo O Deus não-religioso de Jesus Cristo, de Giuseppe
Barbaglio, que parte da premissa de que a antropologia, a filosofia e a história das religiões podem mostrar alguns arquétipos, segundo os quais o ser humano pensou e viveu Deus ou a divindade. Assim, foi-se construindo uma tipologia religiosa unitária subjacente às crenças, ritos e comportamentos do Homo religiosus. Em outras palavras, configurou-se uma imagem estereotipada de Deus presente nas diversas experiências religiosas da história humana. Sem ousar tratar disso de maneira completa e exaustiva, Barbaglio aponta-nos alguns traços característicos dessa tipologia, suficientes para mostrar, por contraste, a originalidade da experiência religiosa de Jesus Cristo e sua atualidade em nossos dias.
Como se vê, a reproposição da religião no novo paradigma ocidental e, com ela, o cristianismo, passa por uma revisão meticulosa da concepção cristã do divino, que tem seu coração na cristologia. Talvez um dos esforços mais bem-sucedidos de reaproximar a pesquisa científica sobre Jesus de Nazaré e a fé cristã tradicional tenha sido feito por Edward Schillebeeckx. No curto espaço de três anos, ele lançou no mercado teológico duas obras excepcionalmente densas e volumosas: Jesus. A história de um vivente (1974) e Cristo e os cristãos. Graça e libertação (1977), que somam mais de 1500 páginas. Infelizmente, nenhuma delas foi publicada em português e muito pouco desse autor está disponível em nossa língua. O artigo-resenha de Andrés Torres Queiruga, O projeto cristológico de Edward Schillebeeckx, que aqui reproduzimos em três partes, poderá encurtar um pouco a distância que nos separa de seus trabalhos. Embora não fosse original no propósito fundamental, nem na maioria das questões e problemas específicos nela tratados (uma vez que já faziam parte da consciência cristológica das duas décadas que a antecederam), a reflexão cristológica de Schillebeeckx inovou por apresentar, pela primeira vez, de forma clara, séria, respeitosa e com profundo conhecimento da tradição teológica, todo o material disperso acerca do tema, e levá-lo às últimas consequências. O presente texto de Queiruga é uma boa introdução crítica a seu método e a seus pressupostos, mostrando como a cristologia de Schillebeeckx insere-se tanto na cultura teológica global quanto na circunstância particular do país e do autor.
Fechando a seção de Artigos, um bônus extra aos cibernautas nesta edição de aniversário: o capítulo final do último livro escrito por Juan Luis Segundo e publicado postumamente: O absoluto-menos: o inferno presente. Por uma dessas ironias da vida, Segundo iniciou sua carreira literária com um opúsculo sobre o existencialismo e a encerrou com uma obra sobre escatologia. Este número traz também, na seção Comunicação, duas breves provocações sobre a inserção da religião na sociedade tecnológica. A tribo dos caçadores de notícias, de Jorge Claudio Ribeiro, sugere algumas considerações sobre a “religião” do jornalista e certos estereótipos em torno do profissional da mídia. Em Da ovelha Dolly à ovelha perdida, José Neivaldo de Souza propõe sua visão da desejável interação entre fé e ciência.
Além dessas, convidamos o cibernauta a conhecer as demais seções de Ciberteologia– Nas fontes da Bíblia, Espiritualidade, Teologia aberta e Resenhas. De modo especial, chamamos a atenção para uma nova seção, Rumo à V Conferência, cujo escopo é tornar disponível a um número maior de interessados textos que vêm sendo produzidos como preparação para a próxima Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho, que acontecerá em Aparecida, São Paulo, Brasil, em 2007.
Enfim, resta recordar e comemorar, nesta sexta edição de Ciberteologia, nosso primeiro aniversário. Um projeto que foi acalentado com carinho e muita dedicação desde o início e que, hoje, já pode ser reputado como um grande sucesso. Como discurso de aniversariante, renovamos nosso desejo de prosseguir estimulando a leitura e a reflexão teológicas, colocando ao alcance de um público mais amplo um pouco do acervo intelectual, teológico e pastoral de Paulinas Editora.
Esta é, também, a ocasião para agradecer aos cibernautas que, ao longo desse ano, nos prestigiaram com seus milhares de visitas, consultas e sugestões críticas. O mérito é de toda a Equipe envolvida no Projeto Ciberteologia, cuja contribuição tem sido inestimável. Nesse trajeto, continua sempre bem-vinda a participação de todas as pessoas interessadas no incremento da produção e da divulgação do pensamento teológico. Pesquisadores e autores com escritos originais afins com nosso projeto podem enviar-nos seus trabalhos (artigos, notas, resenhas), desde que atendam nossas normas de publicação.
Parabéns a todos, então, e boa ciberleitura!
Afonso Maria Ligorio Soares (Redador)