EDITORIAL
A Igreja sinodal traduz de modo concreto, em ideais, em posturas e em projetos de reestruturação, a Igreja como povo de Deus definida pelo Vaticano II. A renovação eclesiológica que marcou a identidade conciliar foi, sem dúvidas, o grande ponto de inflexão do catolicismo, desde a década de sessenta e, constituiu o calcanhar de Aquiles de tudo o que se sucedeu nos anos e décadas seguintes, no conjunto da Igreja. Entre a renovação e a preservação eclesiais, a Igreja avançou desde a década de setenta nos campos da reflexão teológica e das práticas pastorais. Contudo, o eclesial fecundado pela renovação caminhou paralelo ao eclesiástico sustentado pela estrutura organizacional milenar. A teologia eclesial afirmava o primado do igual sobre os díspares, ao definir a Igreja como comunhão dos iguais (teologia do corpo místico, teologia da comunhão e teologia do povo de Deus); a teologia eclesiástica continuava praticando a velha hierarcologia, onde a diferença essencial das funções define não somente a instituição, mas a sua própria natureza eminentemente sacerdotal.
Na primeira perspectiva, a participação de cada sujeito eclesial – onde todos e cada fiel são entendidos como sujeitos – torna-se uma decorrência natural da condição comum dos inseridos no mesmo corpo de Cristo, como já ensinava o Apóstolo Paulo (1Cor 12–15). Na segunda, a distinção natural das funções sobrepõe os consagrados sobre os não-consagrados, os investidos de poder sobre os desempoderados. Na primeira, o leigo é convidado ao protagonismo. Na segunda é colocado em posição de consumidor dos bens religiosos dispensados pela hierarquia. Na primeira, a participação de todos os sujeitos eclesiais faz parte do funcionamento regular das esferas eclesiais. Na segunda, as funções de direção exercidas por direito divino e dever canônico dispensa a sinodalidade. É verdade que o Concílio colocou a hierarquia a serviço do povo de Deus: os ministérios revestidos de poder sagrado estão a serviço dos irmãos, ensina a constituição Lumen gentium (18). Contudo, não dispôs orientações concretas sobre o modus operandi desse serviço, sendo que o poder sagrado permaneceu na mesma postura eclesiástica de antes, pautado pela matriz eclesiológica da teologia do poder. Como servir ao povo de Deus por meio de um poder instituído pelo próprio Cristo sem posicionar-se como centro da Igreja e superioridade consagrada perante os não consagrados? Como vivenciar a realidade da comunhão dos fiéis investidos da mesma dignidade e sustentados em suas diversidades e funções pelo mesmo Espírito doador de dons? Como traduzir ministerialmente a consciência eclesial do sacerdócio comum dos fiéis?
O Vaticano II tirou as consequências da comunhão eclesial para o exercício colegiado do papado e do episcopado, mas deixou um vazio em relação à participação dos demais sujeitos eclesiais nos processos decisórios da Igreja. A eclesiologia do Corpo Místico ficou sem traduções ministeriais, embora a missão do leigo seja afirmada com insistência tanto no capítulo segundo capítulo da Lumen gentium, quanto na no Decreto Apostolicam Actuositatem. A antiga práxis de decisão clerical centralizada e descendente, canonicamente instituída e teologicamente justificada pela teologia do sacerdócio ministerial foi perpetuada, mesmo quando em igrejas particulares a participação dos leigos edificara autênticas Igrejas ministeriais. Essas experiências nascidas do carisma conciliar configuraram práticas renovadoras emblemáticas, mas não foram institucionalizadas, de forma que a rotina implacável do tempo e as políticas conservadoras da Cúria romana proporcionaram, na maioria dos casos, o cansaço, o retrocesso e o fim das comunidades participativas.
A discrepância entre o novo espírito eclesial e a velha estrutura hierárquica ficou, de fato, cada vez mais visível no que se poderia chamar práxis oficial da Igreja, assim como teologia oficial. O esforço de acomodar a teologia povo de Deus no interior do corpo eclesial hierarquizado foi assumido pela oficialidade católica nas décadas seguintes ao grande evento. A fase das experiências eclesiais participativas, concretizada de modo emblemático nas Igrejas da América Latina foi sendo controlada pelos mecanismos regulares das instâncias e do magistério eclesial exercidos no epicentro papal. Comunhão passa a ser sinônima de submissão, integração que executava uma lógica hierárquica descendente: do Papa para os bispos, dos bispos para os presbíteros, dos presbíteros para os leigos. Os leigos participavam na condição diferenciada de não ordenados no corpo eclesial, como membros submissos às decisões elaboradas nas esferas superiores da hierarquia. No início e no fim dos processos decisórios, prevalecia como autoridade investida de poder canônico e eclesial o poder do clérigo exercido na sua esfera de competência, concretamente nas Dioceses e nas Paróquias. De outra parte, afirmou-se uma espécie de divisão de serviços que distinguia a função e a própria missão do clérigo e do leigo. A participação do leigo foi bem definida teológica e politicamente como própria da esfera do mundo. Os leigos participariam da construção da sociedade e os clérigos da construção da Igreja. Essa teologia ainda é reproduzida nos dias atuais e esconde o dualismo que não foi superado pela era pós-conciliar. A divisão dos serviços esconde e omite a participação dos clérigos na sociedade – com uma real influência social e políticas nas conjunturas locais e mundiais – e, sobretudo, dos leigos no corpo eclesial, salvas as funções econômicas nos Conselhos Administrativos das Paróquias.
A sinodalidade é uma postura que supera essa divisão de funções a conclama a todos a repensar teológica, pastoral e politicamente a participação efetiva dos leigos na vida da Igreja. Essa prática almejada tira as consequências teológicas, pastorais e institucionais da eclesiologia conciliar: avança das ideias teológicas para as estruturas. O povo de Deus constitui um sujeito coletivo que goza não somente de uma dignidade comum que iguala todos os sujeitos particulares e todas as funções no mesmo corpo vivo sustentado pelo Espírito do Ressuscitado, mas que participa da construção permanente da Igreja na história. A Igreja em permanente reforma conta com todos os sujeitos e busca os meios mais coerentes de realizar a comunhão e participação.
O Papa Francisco foi eleito com a missão de retirar a Igreja da grande crise que conhecia seu ápice profético na renúncia de Bento XVI. A saída súbita do papa abria a possibilidade política da renovação. A causa da crise havia sido expressa pelo Cardeal Jorge Mario Bergoglio durante as Congregações que preparam o Conclave: a autorreferencialidade eclesial. A afirmação endógena de uma autossuficiência católica constituía no faro certeiro do futuro papa a imagem e a prática a serem superadas com urgência. E na condição de papa apresentou logo o antídoto: a Igreja em saída. Nesse propósito edificou seu projeto de pontificado na emblemática Exortação Evangelii gaudium. Ali se pode verificar o germe da causa sinodal na Igreja, embora o termo sinodalidade não seja utilizado de modo explícito. O princípio sinodal tem como base o próprio espírito do Evangelho que
[...] convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama, reconhecendo-o nos outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos […]. Todas as virtudes estão a serviço desta resposta de amor. Se tal convite não refulge com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas [...] (EG 39).
A exortação programática insiste na “Igreja em saída” de si mesma na busca de suas fontes e dos outros, particularmente dos mais necessitados. Nessa tarefa, a reforma eclesial é urgente e inadiável. A sinodalidade traduz de modo profundo e concreto a tarefa de fazer a Igreja sair de si mesma, a começar por seus próprios mecanismos de participação. A reforma da Igreja exige reformar os modos de exercer os serviços na comunidade, superando as concentrações de poder que dicotomizam as funções entre os ativos e os passivos, os superiores e os inferiores.
Entramos no ano da realização da primeira Sessão do Sínodo sobre a sinodalidade. O plano das duas Sessões expressa a importância dada pelo Papa para o debate, as decisões e a recepção da prática sinodal na Igreja. Como sempre, a expectativa dos resultados vai sendo acesa nos meses que antecedem o evento. O Papa Francisco estimula com sua própria pessoa o sonho de concretizações inéditas que, de fato, traduzam a eclesiologia conciliar em mentalidades, práticas e regras para vida da Igreja. Entre sonhos e realismos os fiéis católicos afinados às reformas franciscanas vivenciarão o dia a dia no epicentro sinodal. O mês de outubro levará a Roma Cardeais, Bispos, Padres e leigos envolvidos no processo sinodal. Em toda assembleia, a busca do consenso é desafiante; exige discernimento, criatividade e honestidade. Os temas mais sensíveis para a vida e a tradição eclesiais despertam as emoções e a luta por justificar os posicionamentos distintos. No método instituído por Francisco, a participação no antes e no durante a assembleia tem sido mais efetiva e transparente. Francisco vai exorcizando os Sínodos das formalidades e dos controles que possam restringir ou direcionar as participações. Pronunciou um Ephata no Sínodo da Família quando disse que nas discussões sinodais nada era proibido, mas, ao contrário, todas as ideias deviam ser colocadas nos trabalhos e plenários para a discussão.
A temática da sinodalidade representa um ponto de chegada das reformas empreitadas por Francisco. Trata-se de uma questão que no âmbito das ideias goza de trânsito e consenso entre os sujeitos e esferas eclesiais. Ninguém nega a sua densidade teológica e, por hora, todos são sinodais. Porém, no momento das traduções concretas para as práticas eclesiais e, sobretudo, para as normas eclesiásticas os velhos padrões e normas do poder clerical centralizado emergem com suas teologias. Nesse sentido, os debates sinodais contarão com consensos e divergências. As boas e belas ideias serão aprovadas. As propostas que exigirem reformas políticas e estruturais serão rebatidas e terão dificuldades de aprovação. Não faltarão as estratégias ideológicas que escondem ou distorcem as exigências concretas da sinodalidade que possam desempoderar os clérigos e empoderar os leigos. No núcleo mais duro da conservação do poder eclesial centralizado recorrerão, por certo, à teologia do sacerdócio que distingue de forma irretocável os ordenados e os não ordenados e, por conseguinte, os detentores por direito divino da missão de dirigir o povo de Deus. Pastor é pastor, ovelha é ovelha! A imagem é elucidativa das perpétuas distinções e concentrações dos ministérios na Igreja.
Outros obstáculos dificultarão os debates e a recepção do Sínodo. As posturas individualista e conservadora não exigem o confronto com as diferenças e a construção dos consensos eclesiais; ao contrário, entendem a vida eclesial como algo já dado que deve ser recebido como ordem constituída que possibilita a experiência emocional de cada indivíduo ou que já é portadora de uma verdade encarnada na instituição estável. A conversão sinodal é a conversão antes de tudo espiritual: a abertura ao Espírito que conduz a Igreja nos caminhos provisórios e sempre inseguros da história. Sem essa consciência a sinodalidade perde sua essência mais fundamental e se reduz a uma mera funcionalidade ou a um exercício de autoridade legítima dentro da comunidade eclesial. O discernimento dos sinais dos tempos adquire nessa perspectiva uma relevância fundamental como exercício constante dos sujeitos eclesiais em cada esfera de organização eclesial. A Igreja sinodal é a Igreja sempre em construção e da renovação permanente – ecclesia semper reformanda – em cada tempo e lugar. O discernimento cristão não é um ato de inspiração individualizada que dispensa o confronto com as diferenças; ao contrário, é sempre uma partilha feita na comunhão eclesial, onde os iguais e os diferentes se completam e decidem em conjunto as formas mais adequadas de viver em comunidade, seguindo o preceito do amor e não o do poder de mando. Nesse sentido, a sinodalidade não tem receita, embora exija acordos comuns em torno das funções e das ações na comunidade eclesial. Ela nasce da postura de abertura ao Espírito indissociável da abertura ao outro diferente. O mesmo Espírito doador de dons e o mesmo corpo a ser edificado por cada fiel unificam as diferenças ativas da comunidade.
Tudo isso pode ser um sonho; porém um sonho de quem está bem acordado pelas exigências da vigilância evangélica. As mudanças começam pelo desejo. Sem desejar que as coisas mudem dificilmente as transformações acontecem. Nesse momento histórico é preciso semear sonhos de uma Igreja participativa que superam as velhas e consolidadas dicotomias e as concentrações de funções e de poder. Por certo, nem tudo que for sonhado será realizado. Mas o sonhado gera a vontade de agir e de mudar, de participar e de construir. É preciso sonhar com a Igreja participativa, toda ministerial, sem donos clericais que se julgam mais qualificados e autorizados a “comandar a Igreja” em qualquer esfera que seja.
Por ora, caminhamos na esperança que nos faz sonhar com a Igreja sinodal. Francisco é o baluarte da mudança eclesial, ainda que executada dentro das condições de possibilidade da tradição e da instituição milenar. Há pouco mais de uma década ninguém ousaria crer no clima eclesial atual, em que a renovação, antes vista com suspeita e, até mesmo, condenada como perigo de dissenso, fosse a pauta de um pontificado. No ideário franciscano da renovação todos são convocados à renovação:
No seu constante discernimento, a Igreja pode chegar também a reconhecer costumes próprios não diretamente ligados ao núcleo do Evangelho, alguns muito radicados no curso da história, que hoje já não são interpretados da mesma maneira e cuja mensagem habitualmente não é percebida de modo adequado. Podem até ser belos, mas agora não prestam o mesmo serviço à transmissão do Evangelho. Não tenhamos medo de revê-los! (EG 43)
É preciso sonhar com a sinodalidade para perder o medo da participação e da superação do poder clerical que concentra as funções nas mãos de alguns poucos autorizados por Deus para o exercício. Ecoa a chama de Francisco: “Não tenhamos medo de revê-los!”. O medo é utilizado pelos conservadores de ontem e de hoje como sentimento que impede as mudanças: medo dos inimigos da sã doutrina, medo do cisma, medo do anticristo, medo da modernidade etc. No sonho do novo iniciam-se as imagens e os cenários da transformação e o desejo vai superando os medos com suas fantasias grandes ou pequenas de uma Igreja sinodal. A Igreja imaginada desperta a Igreja viável nascida do coração do Evangelho.
O número atual de Ciberteologia quer ajudar a sonhar com a Igreja sinodal. Acrescenta-se a essa temática uma análise inevitável dos movimentos pós-eleitorais que negaram os resultados das eleições nacionais e pediram uma intervenção federal/militar. Trata-se de uma consciência autoritária e ditatorial que se posiciona, precisamente, no polo oposto do sonho da participação sinodal na velha Igreja hierarquizada. O modesto dossiê expõe reflexões nesse tempo de preparação sinodal, quando o Sínodo já acontece como participação geral dos sujeitos eclesiais nas diversas frentes eclesiais. Não constitui problema se as reflexões errarem no cálculo e exagerarem no sonho. O sonho acordado e vigilante dessa Igreja tem força germinal, provoca, agrega e impulsiona a todos. É melhor errar no sonho do que ficar estagnado no conformismo e no desânimo que se alimentam daquilo que “sempre foi assim”. O potencial renovador do próximo Sínodo irá muito além dos sonhos que clamam por mudanças e da realidade eclesial que pode frear transformações efetivas; abrirá ou retomará, com certeza, uma era de renovação do jeito de ser Igreja.
Sonho que se sonha só, pode ser pura ilusão
Sonho que se sonha junto é sinal de solução.
(Zé Vicente)
João Décio Passos
Editor