Os demônios voltaram? | Editorial | Ciberteologia - Revista de Teologia e Cultura

EDITORIAL

Na década de 1980, o conhecidíssimo Padre Oscar Quevedo, parapsicólogo jesuíta, publicou um livro resultado de uma tese de doutorado intitulado Antes que os demônios voltem. O livro oferecia um estudo completo sobre o demônio com um viés demitizador, utilizando-se das chaves analíticas da teológica e, sobretudo, da parapsicológica. A demolição demonológica ali apresentada lhe custou um silêncio aplicado pela própria Companhia de Jesus por ordem direta de Roma. O livro foi considerado perigoso para a doutrina católica sobre o demônio. Antes, durante e depois da reprimenda romana o jesuíta permaneceu convicto da inexistência não somente da possessão demoníaca e do bicho de rabo e chifres do imaginário popular, mas também do anjo desobediente expulso do céu por Miguel e seus guerreiros. Entendia que tudo isso não passava de uma construção mítica que deveria ser superada em nome da razão (da ciência capaz de explicar a dinâmica psicológica dos fenômenos) e da fé (com uma teologia crítica que distinguisse as formulações míticas do sentido profundo da fé). Antes que os demônios voltassem era necessário demitizá-lo, retirá-lo do imaginário religioso cristão. Era a batalha a ser travada pela ciência e pela Igreja.


O religioso parapsicólogo tornou-se conhecido como o “caçador de enigmas” e teve um papel importante como representante de uma interpretação crítica dos fenômenos demoníacos que, por certo, desautorizava os cultos de exorcismos. Perante Quevedo nenhum Demônio permanecia de pé. Costumava dizer que retiraria qualquer Demônio incorporado sem orações e água benta. Esses fenômenos seriam explicados tão somente como distúrbios psíquicos e, como tais, deveriam ser submetidos a intervenções terapêuticas. Sem entrar no mérito de sua teoria demonológica, o fato é que, conforme ele temia, os Demônios voltaram no âmbito do catolicismo com suas velhas fisionomias e façanhas. Nos tempos de sua militância cientifica e religiosa bastante apaixonada e competente, os demônios habitavam com muita frequência as igrejas neopentecostais e muito pouco na Igreja Católica mais preocupada em contribuir com a compreensão e superação dos males sociais que matavam os seres humanos.


Na verdade, desde as renovações conciliares, o demônio havia ocupado um lugar bastante ambíguo: como ser entendido como real e vinculado à tradição doutrinal católica e como objeto de desmistificação científica e teológica. De um modo geral, a Igreja Católica havia assimilado a ideia da necessidade da mediação científica para entender os supostos fenômenos demoníacos, antes de acionar a interpretação angeológica tradicional e, evidentemente, aplicar os rituais de exorcismos. Após o Concilio, o Demônio havia dado uma trégua nos ambientes eclesiais católicos, embora, como se sabe, permanecesse vivo no imaginário católico popular e, ao menos, um ser real na doutrina oficial. Com efeito, tornara-se uma ideia pouco relevante para a vivência e a compreensão renovadas da fé no mundo moderno que permanecia ambíguo, mas que contava com narrativas capazes de detectar as causas dos males e com intervenções cientificas que eram aplicadas nos fenômenos doentios do corpo e da alma.


Nesse contexto, os rituais e os exorcistas oficiais das dioceses estiveram em crise, em uma longa quarentena, se compararmos com a fase eclesial tridentina. Contudo, do lado pentecostal permanecia vivo e atuante. Um pouco mais tarde e de forma cada vez mais explícita, no interior do catolicismo por meio da Renovação Carismática Católica, o demônio vai retomando sua atividade e, em boa medida, compondo o imaginário central da própria práxis de fé desse movimento na linhagem direta com suas raízes pentecostais. Na verdade, a luta entre Deus e o Demônio já compunha a visão e a práxis dessa tendência cristã desde as suas origens entre os pobres nas periferias de Los Angeles e Chicago no início do moderno século XX. De fato, pentecostalismo sem Demônio corre o risco de perder sua razão de ser. A luta contra o “Inimigo” agrega os fiéis em torno de uma batalha permanente e os rituais de exorcismo passam a compor a agenda central dos ritos praticados regularmente por pastores e padres alinhados a essa tendência. Como paradigma religioso marcadamente emocional, operado na dinâmica do entusiasmo e em contextos de indigência social e existencial, o pentecostalismo encena as velhas lutas religiosas arquetípicas narradas pelos mitos: a luta do cosmos contra o caos, do bem contra o mal, de Deus contra o Demônio. Os rituais encenam a cada sessão o retorno do mal e sua superação pela força de Deus.


A figura demoníaca parece habitar, sobretudo, o mundo religioso popular como uma imagem bem desenhada em termos iconográficos e funcionais. Nesse sentido, pode-se falar em um Demônio do cristianismo/catolicismo que se consolida no interior da cultura ocidental, antes de se pensar em suas origens judaicas e cristãs testemunhadas nas fontes bíblicas. É com essa pré-noção cultural que operam os imaginários demonológicos quando se aproximam de uma narrativa bíblica e quando se deparam com um suposto fenômeno de incorporação. Com a imagem/ideia do Demônio elaborada e consolidada nas religiões populares de matriz cristã interpretam a realidade: as causas regulares dos males, as causas imediatas das tragédias e das doenças, assim como dos fenômenos psíquicos de consciência alterada. Aliás, o Demônio nunca abandonou esse território dominado mais pela imaginação religiosa do que pela reflexão crítica da fé. Aí, a luta permanente é mais fundamental que a vitória definitiva de Deus. O Demônio está sempre de volta. Na verdade, ele não vai embora uma vez que o mundo permanece precário, marcado pelas chagas dos males que lhe são inerentes.


Sem povo crente no Ser Maligno não haveria pastores e padres oferecendo os serviços de exorcismos. Se, por um lado, vale a máxima de que só há oferta onde há demanda, por outro, vale hoje o princípio fundamental do marketing: a criação de demandas onde ela ainda não existe. Parece certo afirmar que os pastores e padres têm, de fato, sabido aproveitar de um imaginário popular e feito emergir de forma mais intensa e frequente a figura do velho Maligno. Trata-se, no caso, de uma reprodução – mais que construção – de uma figura que se mostra importante para a vida do crente, atingido por males diários e, muitas vezes sem soluções; de um personagem que agrega e sintetiza todos os males e de um ritual que oferece solução simbólica para esses mesmos males. Nesse sentido, a pergunta a ser feita pelos Demônios em alta é, antes de tudo, pela função da religião. As ofertas de solução simbólicas que produzem eficácias são legitimas do ponto de vista da razão e da fé? Ou seja, são coerentes com aquilo que as ciências disponibilizam como ferramentas explicativas dos fenômenos? São coerentes com as ponderações teológicas oferecidas pela teologia atual? São ainda coerentes com as orientações da doutrina da Igreja católica? A identificação imediata fenômeno psicológico-possessão e a aplicação imediata da solução simbólica do rito de exorcismo acontece em uma bolha eclesial onde as coisas já se encontram explicadas e, por conseguinte, solucionadas ritualmente dentro de determinados paradigmas teológicos autorreferenciados pelo grupo, o que dispensa o recurso de outras mediações teóricas, doutrinais e pastorais. As possessões demoníacas fazem parte de um universo social endógeno subsistente dentro do cristianismo, e hoje dentro do catolicismo, onde representações do mal reproduzem mais imaginários populares do que propriamente a doutrina cristã/católica que oferece ponderações importantes sobre a questão. Em outros termos, o demônio, embora em alta e em franca expansão, não constitui unanimidade na práxis do cristianismo e do catolicismo. Enquanto determinados grupos têm colocado a figura como parte essencial de suas representações e práticas, uma maioria vive sem ele e sequer dele necessita para explicar e enfrentar o mal.


De fato, o demônio se mostra ausente nas reflexões teológicas críticas ou modernas, como um tema desinteressante ou superado, discreto na doutrina oficial católica que parece não poder dispensá-lo, tendo em vista sua presença na longa tradição e ativo nas percepções pentecostais, fundamentalistas e tradicionalistas. Nessas matrizes regidas por abordagens teológicas pré-modernas, o demônio encontra espaço livre para atuar e se torna cada vez mais visível em rituais de exorcismos. As missas tridentinas celebradas em latim têm sido um lugar demarcado por ritos de exorcismos, em muitas igrejas do Brasil. A presença do Demônio se inscreve, assim, em uma luta hermenêutica mais fundamental: aquela que confronta as racionalidades modernas estruturadas pelas ciências e as tradicionais estruturadas por uma teologia clássica de cunho essencialista, no caso católico, ou de cunho fundamentalista, no caso do pentecostalismo evangélico e também católico. Por certo, a carga mítica dominante na figura se apresenta como o dado que explica tanto a aceitação, quanto a indiferença (rejeição) ao demônio. Para a imaginação mítica trata-se de uma entidade obvia e necessária para a compreensão e superação do mal, enquanto para as mentes racionalizadas, apresenta-se como uma questão filosófica complexa que conflita com a percepção de um Deus absoluto e bom e com a própria definição do mal em si mesmo. Fora da gramática mítica, o Anjo rebelde só pode ser uma ideia incômoda que persiste no imaginário e na doutrina cristã.


O fato é que os Demônios estão voltando em uma época que, ao menos no mundo católico, nota-se um vácuo de figuras demitizadoras como a representada por Quevedo, ainda que a psiquiatria e a psicologia tenham avançado nas abordagens sobre os estados alterados de consciência. A teologia, de sua parte, não somente oferece referências exegéticas que recolocam a temática demonológica no seu contexto cultural original, como insiste em não misturar as linguagens das ciências com as da fé, como muitas vezes operava o cientista Quevedo. Se hoje a tendência do uso apologético das ciências merece a reprovação dos estudiosos de teologia, a mediação da mesma permanece, contudo, como regra que concretiza a longa tradição da fé que busca razão (fides quaerens intellectum). A relação necessária entre razão e fé que fez nascer a teologia e condicionou a própria formulação das doutrinas no decorrer da história cristã, permanece como regra básica para pensar e praticar a fé. Se na idade média esse princípio metodológico contava com o que se pode chamar “ciência da época” (a filosofia platônica e, sobretudo, as chamadas ciências aristotélicas), hoje as mediações cientificas disponíveis compõem um acervo gigantesco que abrange as mais diversas dimensões da vida natural e cultural. Mais do que na idade média, essas mediações avalizadas pelas regras das metodologias empíricas, podem oferecer categorias analíticas, regras metodológicas e paradigmas explicativos para a elaboração das interpretações teológicas. Não há como no passado a perspectiva epistemológica de uma hierarquia cientifica quando uma ciência se submete à outra, mas uma perspectiva de multiplicidade de objetos e de abordagens que devem entrar em diálogo permanente na busca da verdade. A relação da teologia com as ciências acontece nessa dinâmica de inter e de transdisciplinaridade. Caminho desafiante, laboral e indispensável nos dias de hoje e, com certeza, para o futuro.
A volta dos demônios não parece contar mais com esse caminho clássico do cristianismo e, de modo emblemático, do catolicismo. Ele avança por territórios que dispensam a ciência como mediação necessária para decodificar os fenômenos humanos, aqueles ordinários e aqueles extraordinários. Os territórios onde emerge e atua são estruturados por hermenêuticas fundamentalistas e entusiastas de matriz pentecostal, tradicionalistas e triunfalistas de matriz católica tridentina e por hermenêuticas culturais da sociedade excitada e do espetáculo. É na confluência dessas interpretações que os Demônios retornam com força e legitimidade. Eles não retornaram de uma longa quarentena no inferno, não nasceram por geração espontânea e nem pela criatividade ingênua de alguns líderes religiosos. Nascem de uma composição híbrida de variáveis religiosas e culturais atuantes no contexto cultural/eclesial atual. Essa volta significa como todo fenômeno cultural ligado a significados tradicionais, de uma construção do passado a partir do presente. O supostamente velho resgatado é, na verdade, um imaginário presente que constrói o passado.


No mundo rural do catolicismo popular o Demônio se manifestava nas encruzilhadas para fazer seus pactos com os interessados em algum benefício de sucesso na vida em troca da alma. É nas encruzilhadas da cultura de consumo, do espetáculo, do individualismo, do fundamentalismo e do tradicionalismo que volta a manifestar-se em rituais cíclicos a cada semana e em cada culto. Uma síntese simbólica bem-sucedida que agrega na figura do maligno todos os males da sociedade e da existência individual e encena a vitória do bem sobre o mal. Os rituais de exorcismo antecipam aquilo que os fiéis esperam em suas vidas: viver a felicidade sem limites. Nesses momentos mágicos de vitória de Deus, a felicidade deixa de ser paradoxal e torna-se possível para todos os crentes. O domínio ritual sobre o mal antecipa a vitória escatológica em grande estilo, com personagens e roteiros emocionantes e com um efeito imediato de catarse coletiva (descarrego) que libera o grupo para retornar à rotina pesada da vida. A felicidade torna-se, assim, mais próxima e experimentada como sensação concreta, sem demora e sem adiamentos indefinidos. Os males sem sujeitos conhecidos e sem controles e que afetam a vida econômica, social e política adquire nome e endereço e mostra a sua fragilidade.


As experiências de crise pelas quais passam pessoas e grupos desencadeiam a busca dos inimigos causadores dos males. E quando a causa não é localizada e, se localizada não convence, os inimigos são construídos para, em seguida, serem eliminados e libertarem o grupo. As teorias da conspiração de ontem e de hoje são, precisamente, a construção dos inimigos com nome e endereço: aqueles que são os responsáveis por todos os males. Assim foram os judeus para a Alemanha nazista e os comunistas para as ditaduras do século XX e para o governo atual. O passo seguinte da conspiração é o mecanismo do bode expiatório: o inimigo localizado é eliminado para libertar o grupo de todos os males. Ao ser eliminado por mecanismos violentos de natureza simbólica, política ou física o personagem expia o grupo, provoca uma espécie de catarse coletiva, como bem explica René Girard. Nos tempos atuais, em que as crises econômica, ecológica e política persistem sem soluções, as conspirações e os bodes expiatórios se tornam cada vez mais usuais na sociedade e nas religiões. É nesse pano de fundo sociocultural que o demônio encena simbolicamente as soluções expiatórias para os grupos acuados pelo temor da crise. A conquista imediata da felicidade implica na eliminação do mal pela raiz, ou seja, a eliminação do autor de todos os males. No entanto, como se trata de uma solução ritual, ela precisa ser refeita periodicamente. O ciclo de vai-e-vem do demônio é essencial para encenar a vitoria incessante do bem sobre o mal. Tão importante quanto à eliminação do Demônio é sua volta. Sem a volta contínua não há o ritual e sem o ritual não há a catarse. É necessário trazer de volta o autor dos males precisamente para eliminá-lo a cada ritual.


A teologia da batalha espiritual de matriz protestante e de ampla fecundação pentecostal tem dado suporte “teológico” para o retorno dos Demônios. A luta entre o bem e o mal é uma luta cósmica (apocalíptica) permanente que deve ser enfrentada pelos crentes no poder de Deus. Mas já se foi o tempo em que se tratava apenas de uma luta simbólica desvinculada da história. Essa metafísica da idade do maniqueísmo opera hoje em afinidade direta com as lutas políticas. As batalhas espirituais são batalhas políticas e encenam as traduções tão bizarras quanto perigosas: espécie de teologia da guerra que apoia o uso intenso das armas por parte de civis. A foto de um padre conhecido das mídias vestido de batina e empunhando um rifle ao lado de Olavo de Carvalho é emblemática dessa postura. As batalhas espirituais deixaram de ser batalhas simbólicas. Os crucifixos e as bíblias estão acompanhados dos fuzis. Os Demônios habitam o mesmo mundo dos inimigos da prosperidade e do estado governado pelo poder de Deus. Eles voltaram com fisionomias novas. São entes novos travestidos de velhos.
Tanto no território cultual quanto no território da conspiração política o inimigo precisa ser eliminado. A teologia da batalha conta com imagens populares que retornam com toda força como a devoção a São Miguel Arcanjo. O número de novenas, de santinhos e de imagens do Arcanjo que subjuga o Anjo rebelde é a versão imagética popular católica da teologia da batalha afirmada e divulgada pelos segmentos pentecostais. Mas é também a versão religiosa que reproduz na esfera do simbólico aquilo que é apregoado por líderes políticos de tendência miliciana. As lutas contra o mal que ronda e contra o inimigo da nação confirmam a mesma postura de luta do bem contra o mal. O demônio personifica em sua malignidade absoluta a crise, o medo, o inimigo e aniquilação do mesmo como clima psicológico e como postura política nos dias atuais. A declaração do Ministro Onyx Lorenzoni sobre a oposição ao governo fez de modo emblemático essa ligação direta do cósmico com o político e o apocalíptico: “Porquanto, nossa luta não é contra seres humanos, e sim contra principados e potestades, contra os dominadores deste sistema mundial em trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais” (Ef 6,12).


O número atual de Ciberteologia dedica-se a essa temática tão antiga quanto nova, tão resolvida quanto inexplicável, tão teórica quanto prática. Cada abordagem dedica-se por um viés a aproximar-se da velha questão. As perspectivas são várias e transitam do teológico ao científico propriamente dito, sem assumirem uma postura valorativa perante as imagens e os fenômenos demoníacos. A coincidência triste que exige ser mencionada expõe de modo visceral a tragédia do mal: a guerra da Ucrânia. O mal da guerra, “suja o coração” e “suja a humanidade”, exorta o Papa. Não têm faltado leituras demonológicas e escatológicas desse episódio previsto, para muitos, dentro da lógica das relações internacionais. O mal da guerra conclama a humanidade a pensar suas relações em pleno século XXI, tendo sob seus pés as tragédias das duas grandes guerras. Mais uma vez a luta contra o mal se mostra urgente para os líderes mundiais. “Vencer o mal com o bem” é o caminho de superação da violência que gera violência no ciclo da vingança.

João Décio Passos
Editor

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