Papa Francisco e seu pontificado | Editorial | Ciberteologia - Revista de Teologia e Cultura

EDITORIAL

O Papa Francisco avança no quarto ano de seu pontificado. Aquele frescor carismático inicial, revelado nos primeiros tempos de sua eleição permanece como marca de sua personalidade e, ainda que de modo menos visível, de sua programática de governo da Igreja. As palavras e as posturas continuam atraindo e afugentando católicos, sendo admiradas por muitos e rejeitadas por outros. O recado franciscano permanece: ecclesia semper reformanda. De fato, os líderes reformadores jamais foram consensuais em qualquer tradição ou conjuntura política e institucional. Eles primam-se mais pelo testemunho que demarca territórios que pela estratégia dos acordos políticos que preservam a homogeneidade institucional. Por essa razão, as oposições se tornam inevitáveis, assim como as adesões entusiastas. Perante essas personalidades não há neutralidade política, mesmo que a estratégia da indiferença – na verdade, sempre oposição velada – possa se mostrar com frequência entre os sujeitos que compõem o corpo institucional. Nesse caso, a indiferença é sempre um ocultamento estratégico do dissenso de indivíduos e segmentos, sendo que desse subsolo pode emergir, no momento politicamente conveniente, as oposições explícitas. No caso do ethos católico, a indiferença possui algumas peculiaridades: se mantém como afirmação da unidade eclesial, apresenta-se quando necessário como fidelidade ao Papa e aguarda com realismo paciente um novo Pontífice que suceda o anterior e mude a rota de renovação.

A indiferença em relação às reformas introduzidas na Igreja por Francisco, sobretudo por parte dos membros da hierarquia, tem configurado o principal campo político na Igreja católica atual. É verdade que não têm faltado oposições explícitas por parte de membros do episcopado, coisa impensável na conjuntura anterior dos pontificados da era Wojtyla-Ratzinger. Contudo, a indiferença parece ser o clima geral da Igreja, quando se trata de fazer a recepção do pensamento de Francisco. Tem prevalecido, de fato, a recepção institucional, aquelas referentes às decisões de ordem canônica e aquelas de cunho protocolar, em detrimento da adesão política a seu projeto de reforma. Nesse sentido, Francisco fala sozinho e com pouco eco. A adesão ao seu projeto não vai além de uma reprodução seletiva de suas orientações aqui e acolá. A rotina institucional da Igreja traga em seus costumes e modus operandi os elementos renovadores advindos do Papa, transformando-os, em muitos casos, em discurso
oficial e, outras vezes, em frases de efeito estético. Ambas as posturas fragmentam o sistema ou o projeto do pontificado, esvaziam o potencial renovador e dispensam as ações concretas dos vários sujeitos eclesiais. É quando o carisma vai sendo assimilado institucionalmente e já não fecunda a renovação no conjunto da igreja.

Com efeito, em uma instituição que, por princípio, deve continuar a mesma, portadora de uma tradição repassada de modo inalterada e dirigida por sujeitos investidos de estabilidade de poder, todo projeto renovador soa, de fato, como desnecessário, como ameaçador da ordem e, até mesmo, como herético. Na verdade, as tradições religiosas vivem regularmente dessa “mentira da estabilidade” que renega em nome da vontade divina ou de qualquer outra verdade absoluta os intentos de renovação. Todas esquecem que a tradição e a instituição são construções históricas em mudança permanente, ainda que na lógica do tempo lento e na dinâmica da renovação que preserva a essência do passado. E não assumem por princípio de fidelidade a um fundamento maior – uma origem canonizada ou um momento histórico delimitado como “o verdadeiro” – que ambas, tradição e instituição religiosas, são construções do passado feitas no presente. A afirmação de que sempre foi assim não é mais que um discurso da segurança que legitima uma ordem do presente e a eterniza como estável e imutável. Os conservadores se constituem a partir dessa cosmovisão. Vivem e se alimentam de uma espécie de verdade invertida: a crença de que o presente é o resultado intacto do passado. Não admitem jamais que presente e passado são construídos em uma circularidade permanente e que, portanto, nada é fixo e imutável. Para eles o passado é a fonte única da verdade que vai sendo reproduzida historicamente de modo inalterado. O exercício da verdade é o próprio exercício da repetição. Toda renovação é traição e falsificação da verdade. E imersos no devaneio do passado ignoram as próprias datas históricas de onde saíram as fórmulas, as regras, os discursos e os símbolos que julgam verdadeiros. Aqueles que rejeitaram o aggiornamento conciliar o fizeram em nome de uma cosmovisão eclesial datada no tempo tanto quanto o Vaticano II. O mesmo acontece hoje com os opositores de Francisco: se agarram a modelos doutrinais como se fossem eternos, embora sejam formulados historicamente nem mais nem menos que as atuais renovações introduzidas por Francisco. E argumentam que as reformas dessacralizam o papado, que a revisão das regras morais rompe com a doutrina verdadeira e que o diálogo com as ideias diferentes ameaça a estabilidade eclesial. A famosa Carta dos quatro prelados inquirindo Francisco sobre o significado de algumas passagens da Exortação Amoris laetitia, é um exemplo emblemático dessa postura sacralizadora do passado, na medida em que colocam em confronto ensinamentos dos Papas anteriores e os do atual, indicando de modo claro que o pensamento legítimo ou a doutrina ortodoxa reside no passado, sobretudo no magistério de João Paulo II.

A conjuntura eclesial católica expressa essa ambiguidade, talvez inevitável do ponto de vista da sociologia do poder. A Igreja é dirigida por um líder reformador e mantida por líderes locais estáveis. Em outros termos, a renovação se debate por dentro da estabilidade institucional. Ou, ainda, em chave weberiana, o carisma está instalado dentro da instituição. Nessa condição, a rotinização do carisma constitui o percurso mais previsível, na medida em que passa o tempo e se esquece a conjuntura de crise que o gerou politicamente como saída inevitável para a Igreja. A regularidade funcional da máquina burocrática que estrutura a instituição eclesial reza que tudo deve ser mantido como está é assegurada pelo credo tradicional que repete: sempre foi assim! E mais, a instituição se mostra como expressão fiel e exata da ecclesia constituída por Deus e a tradição como exercício de transmissão fiel da verdade relevada numa sucessão histórica linear que repete a cada geração uma verdade imutável. Nesse regime fechado, toda mudança soa inevitavelmente como desestruturação da verdade estável e como traição da tradição.

A postura renovadora é sempre violenta para as posturas de estabilidade. Os defensores da instituição as prezam como esquema previamente construído que oferece segurança e dispensa o começar de novo. A renovação exige autocrítica e reconstrução do que já está construído e justificado como bom e verdadeiro. A profecia bíblica personifica de modo emblemático esse dado político. Jeremias é enviado com a missão de “arrancar e derrubar, devastar e destruir...” ( Jr 1,10). O próprio Jesus utiliza metáforas que expressam esse choque do carisma profético com a estabilidade institucional; fala da Jerusalém que mata os profetas (Cf. Mt 23,37), afirma que veio trazer a espada e não a paz (Lc 12,49). O paradoxo da postura carismática instalada dentro da instituição é inevitável, uma vez que o líder é instituído precisamente para conduzi-la com eficiência e segurança. O discurso da reforma sustentável e a estratégia da renovação realizada sob o signo da conservação são, portanto, caminhos regulares nessa conjuntura. O primeiro parece exigir habilidade de negociação e processo gradativo de mudança. O segundo, o recurso necessário a uma fonte do passado que fundamente e justifique a proposta de renovação. Francisco tem trilhado esse caminho em seus propósitos claros e firmes de renovação da Igreja. Não fez, de fato, uma opção de reforma radical e imediata, mesmo tendo reiteradamente expressado duras críticas à Cúria romana, ao clericalismo e ao burocratismo eclesial. A sua opção, ao que tudo indica, é implementar uma reforma gradativa: de parte em parte e passo a passo. No tocante à fundamentação das reformas nas fontes do passado tem mostrado habilidade de mestre e convicção inabalável. É do evangelho e, por conseguinte, de Jesus Cristo que advém toda a motivação, o fundamento e o modelo de renovação inadiável da Igreja. Sem essa base, tudo na Igreja perde seu fundamento e sem ela a Igreja torna-se empresa, burocracia, ideologia, museu, legalismo etc. São algumas das imagens utilizadas por Francisco. O “coração do evangelho” é a fonte de onde brota a identificação do cristão com Jesus, a partir da qual a Igreja se coloca em saída e de onde advém o imperativo do amor; é também a fonte de renovação da tradição, de hierarquização das verdades, do discernimento das realidades concretas e de renovação do ensino do Magistério, da teologia e da pastoral.

Francisco não só pratica essa circularidade constante entre os conteúdos da fé, professados e transmitidos pela Igreja, com os conteúdos da vida, vivenciados pelos homens e mulheres em nossos dias de sociedade globalizada, como tem declarado ser necessário articulá-los no momento de pensar a fé. No discurso de abertura do Sínodo da família em 2015 se expressou com essas palavras:

...o Sínodo é uma expressão eclesial, ou seja, é a Igreja que caminha unida para ler a realidade com os olhos da fé e com o coração de Deus; é a igreja que se questiona sobre a sua fidelidade ao depósito da fé, que para ela não representa um museu para visitar nem só para salvaguardar, mas uma fonte viva na qual a Igreja se dessedenta para matar a sede e iluminar o deposito da vida.

Na verdade, não se trata de um método novo, mas de uma continuidade do que se poderia chamar “método conciliar”. O Vaticano II praticou e formulou essa postura metodológica durante as suas sessões e na composição final de cada um de seus Documentos. O objetivo original de aggiornamento o exigia. Duas direções demarcavam os rumos das discussões e definições: a volta às fontes e o olhar atento à realidade presente. As fontes bíblicas foram, de fato, assumidas como a referência fundamental do pensamento conciliar, nascedouro de onde os padres retiravam os conteúdos das reflexões e a própria linguagem adotada nos textos. No outro lado, a realidade presente constituía um solo permanente de ancoragem dos debates e decisões, horizonte que fornecia não somente o realismo das decisões, mas também um significado teológico: Deus é condutor da história e era preciso estar atento aos sinais deixados por Ele no tempo presente.

Mas, é preciso lembrar que o Concílio adotou e formulou esse método fundamental com a noção de sinais dos tempos. A Constituição Gaudium et spes o explicita de modo claro no seu número 44: É dever de todo o povo de Deus e sobretudo dos pastores e teólogos, com a ajuda do Espírito Santo, saber ouvir, discernir e interpretar as várias linguagens de nosso tempo, e julgá-las à luza da palavra de Deus, de modo que a Verdade revelada possa ser cada vez mais intimamente percebida, melhor compreendida e apresentada de um modo mais convincente.

A leitura dos sinais dos tempos confronta permanentemente a Palavra com a realidade presente. Esse método não está, com efeito, desvinculado de uma concepção de tradição e nem mesmo de Revelação, como explicita a passagem acima. A tradição é transmissão que se renova dentro da historia, ou seja, dos diversos contextos históricos onde é comunicada e recebida pelo povo de Deus. Vale dizer, a Palavra não é um depósito fixo que se repte no tempo e no espaço. Com maior razão não pode ser a tradição. A serviço da Palavra viva de Deus, comunicada e testemunhada no texto bíblico, as tradição é um edifício que se renova como veículo que carrega um tesouro precioso no decorrer do tempo; não é fóssil, mas vida que fecunda, não é museu, mas transmissão atenta do fundamento maior que vem da própria fé vivenciada ontem e hoje, sob a força do Espírito do Ressuscitado.

As renovações oferecidas pela Exortação Amoris laetitia se inserem, antes de tudo, sobre esse pressuposto hermenêutico que rompe com uma concepção fixista de tradição e de doutrina, quando entendidas como instituições eternas que se tornam sinônimas da própria fé. Mas se insere também em um pressuposto teológico: a misericórdia. Como dom que vem do próprio Deus (que é a própria misericórdia), que é oferecido em Jesus (amor encarnado que salva) e derramado sobre seus seguidores (que ama e perdoa sem limites), a misericórdia se torna o mandamento supremo da vida cristã que antecede todas as demais regras que possam ser formuladas, sob pena de colocar a instituição no lugar da salvação oferecida por Deus. Desse pressuposto decorre um terceiro de cunho eclesial. A Exortação exige, de fato, comunidades eclesiais vivas e maduras nas quais os membros são sujeitos igualmente maduros, sendo, então, capazes de se conhecerem mutuamente, de discernirem e de incluírem uns aos outros na vivência da fé. O que a norma faz na instituição anônima, o discernimento deve fazer na comunidade de relações diretas, mútuas e co-comprometidas. Quem nunca vivenciou a fé um uma comunidade assim organizada, jamais entenderá a possibilidade de “acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”; preferirá, sem dúvidas, a segurança da norma que resolve moral e juridicamente todos os casos de fragilidade humana na instituição eclesial. A norma claramente formulada salva, de fato, a instituição como regra universal objetiva a ser interiorizada por todos os membros, porém separa os integrados dos desviados, dispensando a vivência do amor como caminho de conhecimento de Deus e dos semelhantes. A regra moral objetiva e rígida tudo define e tudo resolve, porém no plano abstrato e ideal, produzindo quase sempre efeitos contrários ao que deseja alcançar. Proporcional a sua rigidez costumam ser os mecanismos que a transgride de modo velado ou, quando não, de modo explícito. E quanto mais universal for sua abrangência, mais esconderá as particularidades e as vivências com suas práticas particulares (divergentes); quanto mais rígida a regra, mais distante da vida que muda (flexível); por fim, tanto mais fixa, tanto mais ineficaz para orientar os dramas da vida e da historia que mudam sem cessar e que portam necessariamente limites (imponderáveis).

Ciberteologia não poderia ficar fora das discussões emergidas com a Exortação Amoris laetitia. No ano que passou, esteve no centro de debates calorosos inusitados na Igreja católica. Parece certo que estamos dentro de um novo paradigma que jamais será entendido e, muito menos, conciliado, com o paradigma anterior: essencialista na concepção, dedutivo no método, objetivo na formulação, judicativo na normatização, universal na extensão e indiferente na aplicação. Os textos do presente número compõem um modesto dossiê sobre essa temática complexa, atual e urgente. Eles focam diferentes aspectos das orientações sinodais e papais, dando destaque para a citada polêmica. Cada qual elucida um ângulo que revela causas, conceitos e processos que estão implicados no processo de recepção da Exortação. Compõem um conjunto que trata de expor um panorama geral das discussões, os pressupostos das posturas de Francisco e da Exortação, aspectos que envolvem os debates. Fernando Altemeyer abre a seção apresentando dados sobre os impactos da Exortação em certos segmentos da Igreja e recordando o contexto eclesial mais amplo das polêmicas causadas por projetos de renovação da Igreja. O artigo do grande mestre das gerações, Frei Carlos Josaphat, oferece um quadro geral do pensamento do Papa a partir da chave da ética mundial. O padre e psicanalista Konrad Körner analisa as resistências à Exortação dentro e fora da Igreja, dando destaque para o conceito de pós-modernidade. Na sequência, o editor apresenta alguns critérios que julga indispensáveis para situar as renovações oferecidas pelo Documento no âmbito da tradição, ou seja, das permanências e das mudanças. O jovem teólogo André Boccato oferece uma reflexão sobre as temáticas da consciência e do discernimento, entendendo-as como questão central da Amoris laetitia. Edélcio Ottaviani foca na temática do erotismo nas perspectivas filosófica e teológica, tecendo um diálogo com as orientações da Exortação a respeito do assunto. Completa essa seção de Artigos uma homenagem indispensável ao grande artista sacro brasileiro, Claudio Pastro, falecido em outubro do ano passado. A especialista no assunto, doutrora Wilma Steagall De Tommaso, nos brinda com uma espécie de retrato testemunhal do artista e autor, situando-o no período pós-Vaticano II. 

Esse primeiro número do ano de 2017 não poderia deixar de lado a conjuntura política atual de nosso país. Na seção Notas, uma reflexão panorâmica de Carlos Signorelli dedica-se à análise da tão debatida PEC 241 que recoloca as bases legais e as políticas referentes a questões cruciais da vida dos cidadãos na nova conjuntura governamental. O significado e os impactos dessa decisão tomada de súbito na cúpula do poder nacional demarcarão, por certo, a vida das próximas gerações. Nessa mesma seção se encontram pontuações sobre religião, magia e cura na construção bibliográfica do antropólogo Claude Rivière. O presente número recolhe, ainda, na seção Notícias textos históricos referentes aos debates em torno da Amoris laetitia: o texto integral da Carta dos Cardeais ao Papa Francisco, pedindo esclarecimentos sobre alguns tópicos do Documento e a resposta do Teólogo Rodrigo Guerra López. O leitor pode, ainda, conferir textos que resenham trabalhos atuais: o livro de Cesar Kusma, O futuro de Deus na missão da esperança: uma aproximação escatológica, publicado por Paulinas, e a Tese doutoral de Anderson Lino, Aproximações culturais e conflitos sociais em torno da imagem do Bom Jesus da Cana Verde: entre o passado ibérico e as disputas no Brasil, do Programa de Ciências Sociais da PUC-SP.


Com a palavra final o Papa Francisco...
... contemplar a plenitude que ainda não alcançamos permite-nos também relativizar o percurso histórico que estamos fazendo como família, para deixar de pretender das relações interpessoais uma perfeição, uma pureza de intenções e uma coerência que só poderemos encontrar no Reino definitivo. Além disso, impede-nos de julgar com dureza aqueles que vivem em condições de grande fragilidade. Todos somos chamados a manter viva a tensão para algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve viver neste estímulo constante.


Boa leitura,
Dr. João Décio Passos - Editor

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