Pastor com cheiro de ovelha | Editorial | Ciberteologia - Revista de Teologia e Cultura

EDITORIAL

Dezoito anos após deixar o governo da Arquidiocese de São Paulo, deixou esse mundo o grande Pastor Paulo Evaristo Arns, para o povo simplesmente Dom Paulo e para a Igreja latina, Cardeal Arns. Seu currículo, precioso em todos os aspectos, pode ser resumido em algumas palavras não quantificáveis: santidade, profecia, sabedoria. Viveu esses anos de bispo emérito no anonimato, recolhido em sua simplicidade franciscana e revelando a sua capacidade de valorizar o outro, no caso, os seus sucessores. Escolheu continuar em São Paulo, cidade que o acolheu como cidadão e pastor e que por ele já havia sido escolhida como sua terra querida. Soube como poucos conviver com os projetos diferentes de Igreja que fizeram parte do governo de seus sucessores, sem fazer sombras sobre os mesmos e sem manifestar qualquer crítica ou discrepância. Certa vez disse perante eles: são melhores do que eu! Sabedoria política e santidade. Evidentemente, Dom Paulo tinha consciência das mudanças de rumo que aconteceram na Arquidiocese depois de seu longo governo que implantara na Igreja local um rosto nítido, expresso em todas as suas frentes pastorais, em suas instituições e em seus sujeitos. Mas sabia que havia combatido o bom combate, concluído a carreira e mantido a fé (2Tm 4,7). Certamente, era consciente de que ninguém é dono da história e nem dono da Igreja, apenas um sujeito que presta um serviço em um determinado período que passa. Já rezava com Francisco que o tempo é superior ao espaço. O abandono à providência que cuida secretamente de nós o sustentou no silêncio carregado de fé, de caridade e de esperança. Esse perfil discreto e quase anônimo do arcebispo emérito revelou, por certo, a essência do grande Cardeal e do grande intelectual ativo e falante: o ser humano simples seguidor de Jesus de Nazaré, pobre com os pobres, o frade menor, filho do pobrezinho de Assis. Certamente, fora essa a substância mais íntima do Cardeal destemido, comunicativo e dinâmico. Seu silêncio foi a plenitude de suas palavras, seu recolhimento o coroamento de sua ação. A esperança o sustentou sempre na ação e na contemplação, nas palavras e no silêncio.

Seu lema episcopal “de esperança em esperança” (ex spe in spem) norteou, de fato, sua vida como farol e como método. Nenhuma crise o fez recuar e perder o ânimo. Seu episcopado foi testado a fogo no crisol dos tempos de chumbo do Brasil. Sua voz denunciou os desmandos, as injustiças e as perseguições do regime ditatorial, agregou os dispersos e deu rumo aos que reconstruíram a democracia. Sofreu perseguições e calúnias, não somente da parte dos donos do poder e dos inimigos da liberdade e da justiça, mas também de pares de dentro da Igreja. De esperança em esperança caminhou cem cessar e jamais se furtou da verdade que devia ser dita. Fecharam sua Rádio e censuraram seu jornal, mas continuou gritando a verdade sem temor. Como todo profeta, não angariou consenso e unanimidade nem dentro e nem fora da Igreja. Viveu antes de tudo pela profecia, dispensou as honras e os privilégios que lhe pudessem render a posição de Cardeal, perante a sociedade e perante a Cúria romana. O comunicador exímio. Resumia a homilia em dez minutos e falava com naturalidade à falange de jornalistas que o assediava. Não se embaraçava em situações adversas. Falou frontalmente com Golbery sobre as prisões e torturas. Ao Secretário de Segurança que comandara a invasão da PUC dizia: na universidade se entre por concurso e por vestibular. Ao jornalista que o interrogava sobre o uso de preservativo afirmava: aplica-se o princípio do mal menor, conforme a tradição da Igreja. Dizia sem concessões políticas que a Cúria romana comandava o Papa. Por essa razão atraiu oposições, difamações, ódios e perseguições. Não recuou, não lamentou, não retrucou com violência. Ao contrário, dialogou, discerniu, perdoou e amou a todos, de modo preferencial os pobres e os sofredores.

Na sua mensagem de condolências enviada à Igreja de São Paulo, o Papa Francisco recordava com precisão quem foi D. Paulo: “intrépido pastor, que no seu ministério eclesial se revelou autêntica testemunha do Evangelho no meio do seu povo, a todos apontando a senda da verdade, na caridade e do serviço à comunidade em permanente atenção pelos mais desfavorecidos”. Dom Paulo recebe agora a coroa da justiça que lhe estava reservada e que lhe dá o justo juiz (2Tm 4,8). Recordar todos os seus feitos seria, de fato, impossível nesse momento não somente pela lista de incontáveis atos, decisões e discursos, mas também pelo que realizou em sua longa permanência em São Paulo, primeiro como bispo auxiliar (1966-1970) e, em seguida, como arcebispo (1970-1998). Seu currículo é repleto de gestos dignos dos grandes homens que se tornam heróis. Figura carismática jamais enquadrada nas regras da instituição ou a elas reduzida em nome do papel oficial exercido ou de qualquer privilégio. Viveu da liberdade que brota da verdade do Evangelho. A partir desse núcleo essencial exerceu seu ministério com firmeza e alegria contagiante. A misericórdia foi sua regra de vida: acolheu os refugiados políticos, os pobres, os sofredores, os excluídos, os intelectuais perseguidos, os teólogos suspeitos... As pautas do pontificado de Francisco foram antecipadas emblematicamente em suas ideias e ações. Pode-se dizer que colhemos hoje na igreja universal o que aqui na América Latina foi sendo plantado depois do Vaticano II e em nome dele. D. Paulo personifica de modo emblemático o pastor que tem cheiro de ovelhas e que exerce a profecia e a misericórdia. Sua Igreja foi às periferias sociais e existenciais, foi, de fato, a Igreja que se suja por sair na direção do outro, a Igreja que coloca a acolhida antes da norma objetiva e o amor antes e acima da regra. A era D. Paulo passou, mas ressurge, agora, de modo inequívoco nas palavras, nos gestos e nas programáticas de Francisco. Isso significa que o paradigma eclesial adotado por D. Paulo Evaristo deve ser resgatado com toda urgência, na fidelidade ao Evangelho, mas também na fidelidade ao Magistério de Francisco. A memória de sua era deverá alimentar os ideais e práticas de Igreja atuais, deverá deixar de ser memória e ser ação concreta. O caminho já foi feito e muitos ainda se lembram de como caminhar. É tempo de reformar a Igreja, sonha e conclama Francisco: Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação.

A reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante de “saída” e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece a sua amizade (Evangelii gaudium, 27) Dom Paulo está vivo com seus ideais e projetos. Aquilo que foi motivo de reservas e até de condenação em sua vivencia eclesial em São Paulo é hoje pauta comum de toda a Igreja. Seu magistério suspeito é hoje magistério universal. A opção pelos pobres que compunha a convicção de um segmento eclesial do continente está hoje apresentada como questão de fé para toda igreja e como algo que ninguém tem o direito de relativizar em nome de qualquer hermenêutica eclesial (EG 194). Francisco faz hoje justiça a Dom Paulo e a todos os que no continente levaram adiante a postura mais básica do Vaticano II: a Igreja servidora de toda a humanidade e, de modo particular, dos pobres, a Igreja arauto da justiça e em diálogo permanente com o mundo. Nesse momento, Francisco nos confirma na fé e nos alimenta a esperança na direção do que Dom Paulo semeou. Não se trata de preservar intacto aquilo que ele fez, mas de dar continuidade à substância de seu projeto para a grande cidade de São Paulo na sua situação presente: a solidariedade com os pobres, a presença da Igreja nas periferias, o diálogo com as religiões e com a cultura, a defesa intransigente dos direitos humanos e das liberdades. Não restam dúvidas de que nesses dezoito anos o mundo mudou significativamente. As produções e relações humanas se tornaram realmente globalizadas. O individualismo e o consumismo assumiram a posição central nos comportamentos individuais e coletivos. As tecnologias oferecem toda a base para a operação do mercado financeiro e de consumo. A pobreza ficou inserida nesses processos e adquiriu um dinamismo ainda mais perverso: cada vez mais escondida dentro do consumismo que “nivela” a todos na satisfação dos desejos de apossar-se dos produtos incessantemente oferecidos pelo mercado. O mundo nunca necessitou tanto de líderes e de ideais de transformação capazes de recriar as visões e as práticas predominantes. O Brasil recua em suas conquistas democráticas e sociais. A política mundial se vê seduzida por modelos conservadores e se torna cada vez mais refém do mercado financeiro. Também o povo vai se amoldando às seduções de bem-estar do mercado de consumo, inclusive em suas práticas religiosas. A profecia que critica sem medo e concessões e anuncia um outro mun-do possível urge dentro e fora da Igreja, no continente latino-americano e no planeta. Que a memória de Dom Paulo acenda como farol e nos ajude a avançar na busca do Reino de Deus dentro das contradições da história.

Dom Paulo será incluído pelo povo na galeria dos santos. Juntamente com sua irmã Zilda Arns, de quem foi mais que irmão de sangue, irmão de ideal de vida plena, brilhará nos céus de nossas mentes como estrela guia. A intrepidez e sabedoria do Apóstolo de quem emprestou o nome, a vontade de mudar as coisas para melhor, contida no nome Evaristo, e a simplicidade do Frei, foram valores presentes antes, durante e depois do episcopado e do cardinalato. O episcopado vivenciado como serviço e como profecia o coloca entre as raras personalidades que são capazes de viver na tradição sem ser defensor da conservação, de administrar a instituição eclesiástica sem se tornar um burocrata, de exercer o poder sem colocar-se acima das pessoas. A difícil síntese da profecia com a função institucional, do poder com o serviço e da erudição com o pastoreio foi feita por Dom Paulo de modo natural e exemplar. Sua pequena estatura tornava-se imensa: irradiava força, alegria e comunicação em todos os ambientes em que estava. Falava com os pobres e com os generais, com o Papa e com os encarcerados, com intelectuais e com o povo simples na mesma desenvoltura; tinha a palavra certa para a ora certa e carregava a esperança sempre no corpo e na alma.

O Papa Francisco insiste sempre que o pastor tem que ter o cheiro da ovelha. Dom Paulo foi impregnado pelo cheiro do povo da periferia, do suor dos pobres trabalhadores, do sangue dos torturados nas prisões da ditadura e dos miseráveis que dormiam nas ruas de megalópole. O mesmo Papa fala que prefere a Igreja enlameada a uma Igreja limpa por ficar trancada em si mesma. Dom Paulo nunca temeu sujar seu nome por causa da verdade. Foi caluniado pelos donos do poder e do capital. Fecharam a Rádio 9 de Julho, censuraram o Jornal da Arquidiocese, difamaram sua pessoa e distorceram suas palavras. Até mesmo dentro da Igreja não faltaram aqueles que se dedicassem a essa tarefa indigna. Dom Paulo viveu e praticou a profecia em seus gestos e palavras, sem medo das contradições inerentes a essa opção, conforme alertou Jesus de Nazaré: “Ai de vocês, quando todos os homens falarem bem de vocês (Lc 6, 26)”. Certa vez afirmou que em sua vida jamais tinha sido um homem do consenso. Na sua longa existência soube, de fato, alimentar-se das contradições, na verdadeira mística profética e na resistência do servo sofredor. O pastor continuou sempre com voz firme e jamais arredou o pé do caminho do Mestre da verdade e da vida, do caminho dos simples e dos pobres, longe das honras e das glórias, seguiu firme pela via crucis que conduziria sem desvio à ressurreição de esperança em esperança.

A morte de Dom Paulo não apaga a sua vida. Ao contrário, o bom pastor continua brilhando como exemplo de vivência da fé em nossos dias. Perante o clericalismo que avança com força na Igreja atual, a figura de Dom Paulo aponta para o serviço e ensina que o poder não define a missão de nenhum ministério da Igreja, ordenado ou leigo; perante o mundo que vive a idolatria do dinheiro e a mística do consumo, o frade franciscano brilha com sua simplicidade apon-tando para uma cultura do necessário, sem excessos e sem hedonismo; perante o triunfo do relativismo moral centrado no absoluto do indivíduo, o pastor convida à vida em comunidade para todo o povo de Deus e clama pela justiça para todos os filhos de Deus; perante os tradicionalismos que fixam as referências da fé em algum ponto do passado, o pensador cristão chama para o confronto da fé com a vida, do passado com o presente, da Palavra com as palavras atuais; perante as usurpações de direitos sociais que se encontram em curso em nosso país, Dom Paulo continua clamando que todos os direitos devem ser respeitados e que a igualdade é uma exigência que vem da fé em Jesus Cristo e das instituições do Estado moderno. Dom Paulo Evaristo Arns é um filho fiel e exemplar do Vaticano II e da tradição eclesial latino-americana demarcada pela Conferência de Medellín. O aggiornamento da Igreja desejado por São João XXIII tornou-se o espírito e o modus operandi das Igrejas latino-americanas nas décadas que se seguiram ao Concílio. Uma geração de bispos construiu com palavras e gestos a tradição da Igreja dos pobres compromissada com a justiça. Todos pagaram o preço dessa opção perante os poderes instituídos, desde a esfera macro do império do dinheiro comandado pelos Estados Unidos, até as ditaduras que comandavam com força bruta a maioria dos povos do continente, passando, muitas vezes, pelos controles autoritários da própria Cúria romana. Essa geração de autênticos padres da Igreja do continente deixou suas sementes que produziram frutos maduros, agora visíveis. Podemos hoje cantar com Maria que o poderoso elevou os humildes. O mártir Oscar Romero, agora é santo e representante oficial de todos os mortos pela causa dos pobres pelo continente afora. Dom Helder o grande mentor do Concilio Vaticano II e da Conferência da Medellín, bispo vermelho dos ditadores e suspeito de alguns setores eclesiásticos, está a caminho da beatificação. Cardeal Bergoglio é Papa e leva para o centro da Igreja a profecia e a opção pelos pobres. Dom Paulo perfila esses grandes padres e compõe a galeria dos santos e dos sábios do continente; representa todos os que enfrentaram e enfrentam o poder sem medo e em nome da dignidade da vida humana.

Os conscientes hão de brilhar como relâmpagos, os que educam a muitos para justiça brilharão para sempre como estrelas (Dn 12,3). Essa sentença do julgamento divino sobre os oprimidos da história, proclamado por Daniel, ressoa como verdade e esperança para a Igreja da América Latina. Dom Paulo já brilha como estrela. Seu legado perpetuará para as gerações futuras, juntamente com os grandes pastores defensores dos pobres que agora triunfam na Igreja celeste e iluminam a Igreja terrestre.

Esse número de Ciberteologia pretende homenagear esse grande pastor e líder que, desde São Paulo, brilhou como sinal de contradição para o país, para o continente e para o mundo. Os Artigos que compõem esse dossiê focam alguns aspectos perceptíveis em Dom Paulo. Na verdade, perceber Dom Paulo não constitui um grande desafio, tendo em vista sua sinceridade e transparência. Seu sim era sim, seu não era não. Suas palavras eram diretas, suas posturas inequívocas. Por outro lado, como todos os grandes homens, deixa muitas interrogações sobre si: aquelas de seus sofrimentos pessoais, de seus momentos de solidão, de seus hábitos diários, de sua infância no Seminário menor, de seu anonimato como bispo emérito, de seu método de estudo, de suas leituras prediletas, de suas relações com os refugiados políticos, de suas discordâncias com Dicastérios romanos etc. Muitos investigadores curiosos possivelmente dedicarão tempo em busca de respostas sobre essas questões de agora em diante. Por ora, Ciber apresenta 7 Artigos que retomam algumas dimensões desse caleidoscópio raro. Esse dossiê aborda aspectos da personalidade e do ministério episcopal; faz memória de sua pessoa e resgata e desvela ângulos de suas ações. O ex-bispo auxiliar de Dom Paulo, Angélico Sândalo Bernardino, oferece um Prólogo a essas reflexões. Completa esse belo quadro 3 textos inseridos na Seção Destaque, os testemunhos inéditos da Secretária do Cardeal e da amiga Ana Flora Anderson e uma lista completa das 57 obras produzidas por Dom Paulo, mantidas no estado original em que se encontra no Fundo Cardeal Arns do Arquivo Metropolitano. A homenagem é concluída com uma Resenha sobre a Tese doutoral de Frei Paulo Evaristo Arns, defendida na Sorbonne em 1952.

Esse núcleo “paulino” é acrescido de um Artigo referente à espiritualidade e ensino religioso, por dois Artigos incluídos na Seção Notas, focando na temática poética, respectivamente, sobre o Salmo 49 (poesia sagrada como arte) e a obra poética de Dom Pedro Casaldáliga. Ainda nessa Seção é apresentada uma análise sobre as reformas da previdência e trabalhista que se encontram em curso nas esferas parlamentares, ainda que sob os mais fortes protestos da sociedade e das Igrejas. Ciberteologia agradece a todos os que ofereceram suas contribuições para compor essa indispensável homenagem. O Brasil pelo qual lutou e sonhou se encontra nesse momento em uma situação que, de novo, conclama a todos os cidadãos à luta pelos direitos e pelas liberdades democráticas. Nunca mais a tirania, nunca mais a usurpação dos direitos, nunca mais o trabalho servil ao capital. Que a memória da voz profética de Dom Paulo seja um farol na noite em que o país atravessa, mesmo que muitos descansem dormindo o sono dos despreocupados. Acordados pelos seus fortes brados, gritemos novamente juntos: Justiça! Dignidade! Amém!


De esperança em esperança,
Dr. João Décio Passos - Editor

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