Religião e violência | Editorial | Ciberteologia - Revista de Teologia e Cultura

EDITORIAL

Não seria difícil elencar os fatos históricos em que religião e violência estiveram associadas de forma inseparável. A história das civilizações narra as conquistas políticas de povos sobre povos, de nações sobre nações, por meio das armas cada vez mais mortíferas. A violência acompanha a formação das nações antigas e modernas e a morte legítima e necessária é parte desse processo que parece não ter fim na marcha histórica da espécie humana. A constituição, o exercício e a expansão dos poderes ocorreram na medida em que eliminavam os que se apresentavam como obstáculos políticos ou religiosos aos domínios territoriais. Pode-se dizer que a história das civilizações que se firmaram como impérios, como colonização e como regimes políticos foram execuções de necropolíticas, para utilizar a categoria do pensador africano Achille Mbembe. Os poderes políticos se impuseram como uma maquinaria de guerra que distinguiu os que poderiam e deveriam viver ou morrer. O direito de matar vai sendo reciclado pelos poderes por meio de narrativas e de estratégias antigas e novas de eliminar o inimigo que ameaça o grupo que se firma e se expande em seus territórios.


As religiões não estiveram fora desses processos; ao contrário, participaram como motivação primeira e força agregadora dos matadores autorizados e, em muitos casos, como a razão explícita das próprias conquistas e execuções de morte. As cruzadas narram de forma emblemática o uso da religião como razão e finalidade das inúmeras guerras da Europa cristã contra os árabes. Um banho de sangue transbordou nos limites do ocidente com oriente sob o signo da cristandade. Cruz e Espada compuseram os símbolos das guerras empreitadas pelo ocidente cristão naquele tempo, assim como em guerras internas de reinos contra reinos dentro da Europa cristã e iniciando a era moderna em guerras colonizadoras contra os povos nativos da África e das Américas. Sem guerra e sem religião não se pode falar em formação do chamado ocidente, da Europa cristã e dos impérios modernos, incluindo os Estados Unidos da América. 


O Ocidente e a Europa foram construídos simultaneamente com armas de guerra e com a identidade cristã. Não será diferente se voltarmos para o grande oriente, tanto na sua porção cristã de epicentro bizantino herdeiro do velho Império Romano cristão, quanto para os territórios da índia e da China. Os domínios contaram com a técnica das armas e da guerra e com suas respectivas justificativas religiosas. Conquistar e matar em nome de Deus é uma estratégia adotada pelo choque das civilizações e pelos domínios imperiais. Os deuses ganham as guerras juntamente com os seus conquistadores fiéis e valentes, portadores de suas inspirações e forças. De fato, não há conquista sem uma suposta ajuda divina.


A pergunta política, mas, sobretudo, teológica é se Deus autoriza e determina a morte entre os homens. As tradições religiosas terão que responder positivamente se olhar não somente para as suas histórias, como também para seus mitos de origem ou para suas fontes escriturísticas. As fontes judaico-cristãs são resultadas de uma longa temporalidade de formação cultural em que o dado da conquista, das guerras e dos métodos violentos eram naturais e legítimos para o “povo eleito”, assim como para os demais povos antigos. O Deus imago hominis que define as construções religiosas antigas conhece sua versão política e bélica como emblema justificador das lutas, da violência e da morte: Deus imago belli! O Deus guerreiro, imagem e semelhança dos povos em guerra, habita os imaginários religiosos do passado e, muitas vezes, retorna de modo anacrônico e legitimo nos dias atuais. 
A imagem do Deus violento que autoriza matar é um dado incômodo que desafia as interpretações de muitos textos bíblicos, textos sem dúvidas provenientes de um mundo antigo, porém adotados como normativos pelas tradições religiosas que os têm como fontes. Se é verdade que o Decálogo proíbe matar em seu quinto mandamento, também é verdade que a Bíblia hebraica está recheado de imagens de uma necropolítica divina que parecem conviver sem maiores conflitos com a referida Lei divina. Se essa constatação se mostra programática para os estudos bíblicos atuais, não constitui, entretanto, um grande desafio para as tradições religiosas que usam os textos bíblicos como norma de vida, sobretudo por aquelas que defendem a livre interpretação ou a leitura literal dos mesmos. As imagens violentas de Deus se encontram alojadas nas fontes normativas e permanecem disponíveis como arsenal hermenêutico a quem desejar utilizar em função das demandas históricas e conjunturais.


Estamos habituados com a presença de duas posturas antagônicas ativadas em nosso imaginário religioso judaico-cristão. A primeira repetida de modo insistente pelo cristianismo: religião é amor que deve vencer o ódio. Portanto, o cristianismo seria a religião do perdão e do amor aos inimigos e que considera o ódio um pecado grave contra o Deus Amor. A religião excluiria, por sua natureza e missão, os sentimentos e as posturas violentas. A segunda, menos visível, habita por dentro das narrativas bíblicas e sequer provoca questionamentos ou indignação: as cenas violentas que envolvem o povo bíblico e o próprio Deus em muitas passagens do Primeiro Testamento. O Deus ciumento, castigador e violento habita os livros bíblicos com naturalidade e se apresenta, com frequência, nas leituras proclamadas nos cultos cristãos. O Deus violento não causa espanto e, até mesmo, é recorrido como referência para posturas políticas e bélicas no decorrer da história.


É verdade que a primeira postura, além de ser ao conteúdo central e oficial da doutrina cristã, ocupa o lugar confortável como definidora do cristianismo, portanto, a partir do qual se deve ler o conjunto dos livros bíblicos. Esse princípio hermenêutico geral ainda não encontrou sua operacionalidade efetiva, de modo particular quando se observam determinadas leituras pautadas por interesses etnocêntricos e colonialistas, tanto nos velhos tradicionalismos, quanto nos fundamentalismos atuais. Segundo esse princípio, as imagens violentas de Deus deveriam ser abalizadas hermeneuticamente pelos ensinamentos de Jesus ou, na verdade, suplantadas pelo Deus de Jesus Cristo. Contudo, a convivência com as imagens e cenas violentas contidas na Bíblia já não causa espanto entre os crentes supostamente seguidores de Jesus; ao contrário, em muitos movimentos são ativadas como fundamento da guerra, da intolerância, da xenofobia e da homofobia etc. Essas imagens e passagens bíblicas habitam naturalmente os imaginários sem maiores desconfortos para a religião que renega o ódio. 


O que não nos assusta? As pragas do Egito e, em seguida, a matança de egípcios, as guerras de conquista da Terra prometida, as batalhas narradas no livro dos Juízes, os salmos que amaldiçoam os inimigos, as normas violentas do Livro Levítico, a novela violenta do livro de Judite etc. etc. De nossa parte, acompanhamos essas sagas violentas com reverência ao Deus todo-poderoso que mata os seus antagonistas, os inimigos do povo eleito. Tais cenas estão naturalizadas no imaginário religioso judaico e cristão e são, por essa razão, rememoradas, ritualizadas e cantadas em assembleias litúrgicas, sem maiores recursos interpretativos capazes de demitizá-las de suas violências, se essa operação for possível. A violência acompanha a história do povo hebreu e vai naturalizando a relação entre Deus e violência como uma batalha entre os povos bons de Deus o os demais povos inimigos, encarnações de um mal que deve ser eliminado. Um fato tão verdadeiro quanto incômodo: a formação do povo eleito é feita de sangue e morte com a ajuda de Deus. O que fazer com esse dado registrado nos textos bíblicos? Para os cristãos: a Palavra de Deus é violenta e aconselha a violência? O cristianismo reproduz em seu imaginário essa violência naturalizada. E não por acaso ela retorna com força em nossos dias com as teologias da batalha, batalha espiritual dos bons contra os maus; batalha espiritual cada vez mais politizada que vai revelando mais uma vez a importância do fator religioso nas configurações das conjunturas políticas. 


O expurgo da violência das passagens bíblicas exige, por certo, não somente estratégias exegéticas hoje disponíveis, mas, antes de tudo, opções éticas e, por conseguinte, opções hermenêuticas. É do pressuposto da não violência, da paz e do amor como inerentes à fé cristã – e também em outras fés – tanto quanto das regras modernas da convivência comum que pode advir a necessidade de discernir o significado da violência presente na bíblia quando, então, a superação do uso fundamentalistas de determinadas passagens se faz necessária. Em outros termos, a ciência bíblica não age sozinha e por si mesma, mas pressupõe opções anteriores que a solicitam como ferramenta capaz de discernir as contradições de determinadas passagens bíblicas. As pré-noções éticas da paz, da dignidade e da igualdade humanas, da tolerância e do diálogo exigem o discernimento das imagens violentas de Deus entranhadas nos textos bíblicos. Do contrário elas continuarão fundamentando as violências simbólicas e físicas nos dias de hoje. 


O pressuposto de que o Deus Amor de Jesus Cristo é o critério de vida e de seguimento dos discípulos exige, sem titubeios, a superação da normatividade literal e fundamentalista de “todo e qualquer texto bíblico”. A passagem do texto para a norma não se dá como uma tradução imediata e livre, mas, ao contrário, pressupõe operações interpretativas que relativizam, selecionam e, até mesmo, descartam passagens e imagens contidas nos textos sagrados. Essa regra não contém nada de novo. Já estava presente nos primeiros tempos do cristianismo e, antes, no próprio judaísmo, quando a abordagem literal era seguida da abordagem alegórica e, somente então, se buscava o sentido moral ou pedagógico do texto. Em outros termos, é preciso conhecer o texto, antes de aplicá-lo na vida. A prova mais lúcida de que os textos bíblicos devem ser interpretados com alguma regra metodológica é o próprio cristianismo que foi sendo construído relendo as fontes judaicas a partir da experiência com os ensinamentos e os fatos que se sucederam com Jesus de Nazaré. O chamado “método tipológico” (typos = imagem figura ou forma em grego) não fez outra coisa senão buscar novos significados do passado a partir do presente e vice-versa. A chamada “circularidade hermenêutica” é uma dinâmica inevitável em todas as interpretações, mas adquire no cristianismo uma dimensão normativa que rejeita qualquer postura fundamentalista que absolutiza a inerrância da letra, assim como a pratica a seleção descontextualizada de versículos e passagens como sendo leis a serem atualizadas de forma integral no tempo presente. O cristianismo nasceu progressivamente como resultado de uma interpretação renovada (não literal) dos textos hebraicos. Nesse sentido, Paulo de Tarso foi o grande mestre que ofereceu uma hermenêutica renovada da longa tradição consignada nos textos bíblicos hebraicos (na chamada Lei) com a qual foi possível configurar a nova identidade que foi chamada de cristianismo. O cristianismo nasceu antifundamentalista. 


O fundamentalismo com todos os seus ramos e rumos opera com outra hermenêutica que extrai a normatividade de todo e qualquer texto, de forma direta e sem ponderações temporais: o texto de ontem se aplica imediatamente no hoje. Nesse sentido, os textos marcados por violência são modelos para a vida atual, sem desconfortos políticos ou morais. Assim se formula a chamada “teologia da batalha” que se encontra em alta nas tradições pentecostais evangélicas e católicas. Oscilando entre batalha espiritual (por vezes, puramente espiritual) e batalha política (fundada na ideia de batalha espiritual) essa teologia toma fôlego em nossos dias de antagonismo político e de avanço de regimes e governo neoconservadores. O fato é que se pode observar uma tradução crescente da batalha espiritual para as batalhas políticas. O movimento histórico é curioso. As batalhas bélicas reais, narradas em textos bíblicos, foram na longa temporalidade espiritualizadas. Assim, por exemplo, a conhecida “Batalha de Jericó” foi interpretada e aplicada como referência normativa para a conversão de fieis cristãos ao paradigma pentecostal. Os conhecidos “cerco de Jericó” são utilizados pelos pentecostais evangélicos e católicos como método intensivo de espiritualidade. Entretanto, esse movimento espiritualizador das batalhas bíblicas vai sendo cada vez mais politizado. O que era modelo de vida espiritual, torna-se modelo de luta política. As batalhas apocalípticas – resultadas de uma espiritualização tardia das violências religiosas no âmbito judaico e cristão – tornam-se fontes de referências para as lutas políticas. No âmbito católico, a devoção a São Miguel Arcanjo se encontra em alta não por acaso, mas como emblema de uma luta entre o bem e o mal que se concretiza politicamente. Essa postura ficou também clara na afirmação de Onyx Lorenzoni, na ocasião ministro da Secretaria Geral da Presidência, ao falar da oposição ao governo Bolsonaro: “Pois a nossa luta não é contra os seres humanos, mas contra os poderes e autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as Forças Espirituais do mal nas regiões celestiais” (Ef 6,12). A leitura individualizada e espiritualizada do texto bíblico praticada pelas tradições evangélicas torna-se, no caso, histórica e política como norma que justifica as batalhas entre apoiadores e oposição ao governo. O Deus da guerra está reativado por meio de símbolos e de narrativas de ódio que se ascendem nos governos de ultradireita. O retorno ao fundamento religioso da política faz parte desses regimes desde sempre e hoje adquire novos contornos por meio das mídias capazes de agregar as antigas diferenças religiosas em batalhas comuns contra os inimigos. E a Rússia não poderia ficar de fora. Na grande celebração convocada por Vladimir Putin para enaltecer a guerra contra a Ucrânia o líder concluiu seu discurso utilizando a passagem do quarto Evangelho (Jo 15,13), dizendo aos que defendem a nação que “não há maior amor do que dar a vida por seus amigos”.


O tenebroso 8 de janeiro de 2023 encenou uma guerra contra os poderes da república também em nome de Deus. Muitos depredadores exibiam imagens de Nossa Senhora Aparecida em punho, verdadeiros escudos de guerra enquanto a destruição liquidava com os edifícios dos três poderes. 
A religião agrega e fundamenta as ações violentas de um grupo contra o outro. Os grupos fechados (os endogrupos) que se definem em oposição aos demais (os exogrupos) desencadeia as intolerâncias e as guerras de todos os tipos. Na medida em que as crises ameaçam as estabilidades a espiral da rejeição e da violência se eleva como clima e estratégia. É quando se instalam as diversas fobias e o ódio se torna legitimo e desemboca na morte legítima. A sequência destrutiva do outro segue uma lógica que culmina na morte justificada: distinção-estigmatização-rejeição-criminalização-eliminação. Essa sequência de construção crescente da violência foi explicada por autores contemporâneos da catástrofe nazifascista. Nesse contexto, o psicólogo estadunidense G. Allport construiu uma escala para demonstrar natureza do preconceito, indo da linguagem segregadora ao genocídio. Na mesma época K. Popper examina a ideia dos inimigos a partir da categoria social tribo. Para ele é na medida em que os grupos recuam dos consensos que construíram as relações amplas e as civilizações para suas autorreferencialidades que eles voltam à condição de tribo e passam a perceber, rejeitar a eliminar o outro como inimigo perigoso. Um mundo retribalizado refugia-se na ideia nativista de que são mais humanos e, até mesmo, eleitos de Deus. E no interior do mundo globalizado emergem hoje as políticas isolacionista, das bolhas sociovirtuais às relações mundiais que renegam as práticas multilaterais. Nessa retribalização a imagem do Deus violento que protege seus eleitos e autoriza matar os inimigos reaparece com força e sem disfarces. “As sombras de um mundo fechado” avançam sobre nós, alerta o Papa Francisco.


Em sua última Encíclica Fratelli Tutti (27) chama a atenção para os isolamentos que se configuram como regra de segurança para os indivíduos, grupos e nações em nossos dias:


[...] criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o “meu” mundo; e muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável passando a ser apenas “os outros”. Reaparece “a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer os muros, muros no coração, muros na terra, para impedir este encontro com outras culturas, com outras pessoas. E quem levanta um muro, quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes”.

 

A relação entre religião e violência é plural e complexa. Pode ser localizada na história como um dado que acompanha a formação das civilizações desde o mundo antigo. Pode ser explicada como um dado social e antropológico que expressa mecanismos mais profundos da alma humana, de modo particular a alma coletiva. Pode, por fim, passar pelo discernimento teológico; ser questionada por dentro da tradição bíblica, desde onde se busca o sentido radical do não matar e do Deus Amor que renega a violência e condena o ato de matar. Ademais, o discernimento político e ético do uso violento da religião tem seu lugar na sociedade atual, estruturada pelo valor e a prática da pluralidade e do respeito às diferenças. 


O presente número de Ciber aborda essa questão por distintos vieses, priorizando as abordagens da ciência da religião. Tem como pano de fundo a emergência do religioso como fundamento dos governos e projetos de extrema direita pelo planeta afora e, sobretudo, a ressaca e as interrogações que ainda persistem sobre a guerra religiosa que sustentou as eleições em nosso país. Ao lado dessa efervescência religiosa polarizante, o número oferece um conveniente contraponto: um estudo sobre os sem religião no Brasil. Será por dentro da pluralidade que o cristianismo poderá cumprir sua missão de construtor da fraternidade universal. 


Quero escutar o que Deus fala!
O Senhor, realmente, fala de paz... (Sl 85,9)


João Décio Passos
Editor

 

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