EDITORIAL
Ritos orientais no Brasil
Os católicos de um modo geral possuem uma visão latina da Igreja; entendem que a Igreja Católica é somente o seu rito latino, esquecendo-se dos ritos orientais que também fazem parte da mesma comunhão eclesial. Trata-se de um latinocentrismo, expressão eclesial do eurocentrismo tão presente no ocidente e no próprio catolicismo. No ocidente, pensamos a realidade a partir da cultura europeia: das línguas, dos costumes, das ciências e da religião construídas e consolidadas nessa região do globo, desde que as tradições judaico-cristã e greco-romana se encontraram e se fundiram em muitos aspectos, construindo, gradativamente, uma civilização. Esta parte geopolítica e cultural do mundo é assumida, então, como um todo, deixando de fora outras partes que integram a vida humana e as civilizações de outras localidades. E os que ficavam de fora costumavam ser vistos como estranho, bárbaro, primitivo e, até mesmo, como perigoso. O eurocentrismo de ontem e de hoje gera a postura colonialista, quando os povos europeus impõem seus padrões sobre outros povos, ignorando o direito de os mesmos serem diferentes.
Muitos católicos se comportam de modo semelhante: o que está fora da tradição latina (a liturgia, as devoções, as imagens, os padres celibatários etc.) é visto como estranho, como outra coisa diferente do verdadeiro catolicismo. O catolicismo autêntico seria o latino; os demais seriam periféricos e exóticos e não poderiam contribuir com a riqueza dos dons diversos que compõem o mesmo corpo eclesial. O teólogo Boaventura Kloppenburg, perito conciliar, confessa que até a experiência do Vaticano II carregava uma imagem exclusivamente latina da Igreja católica. O contato com as tradições orientais ali presentes o teria feito perceber o fato de que o catolicismo latino é apenas uma das tradições que compõem a comunhão católica. O catolicismo é tanto latino quando oriental. A constatação do teólogo demonstra o quanto a latinidade constitui o centro da percepção eclesial católica, o que se torna ainda mais patente para os fieis comuns que muitas vezes sequer sabem da existência dessas expressões eclesiais.
Com efeito, mesmo que o Vaticano II tenha dado um lugar merecido às tradições orientais, ainda persiste na igreja uma postura que toma a parte (rito latino) como o todo (Igreja Católica). Essa postura latinocêntrica é, na verdade, eurocêntrica; identifica a igreja com os padrões culturais ocidentais e, de muitas formas, busca os meios de latinizar o que está de fora do ocidente. A Igreja Católica pode, contudo, aprender de sua própria diversidade interna e lançar-se sem medo no diálogo com as culturas nas quais se encontra inserida. Trata-se de fazer no presente o que já fez no passado:
Pois esta é a intenção da Igreja católica: que permaneçam salvas e íntegras as tradições de cada Igreja particular ou rito. E ela mesma quer igualmente adaptar o seu modo de vida às várias necessidades dos tempos e lugares (Orientalium ecclesiarum, 2).
A Igreja Católica é ocidental e oriental, embora seu centro simbólico e administrativo esteja localizado no ocidente, precisamente em Roma com o bispo de Roma, Patriarca do ocidente e sucessor de Pedro na coordenação do conjunto. Vale lembrar que, na verdade, as primeiras Igrejas mais importantes do catolicismo estiveram localizadas precisamente no oriente, nos grandes centros urbanos e históricos: Jerusalém, Antioquia e Alexandria. Antes de residir em Roma Pedro esteve em Antioquia, assim como o Apostolo Paulo. Nesse epicentro o cristianismo deu seus primeiros passos e também foi escrita grande parte dos livros do Novo Testamento. A cidade de Constantinopla, capital do império romano do oriente, foi outra sede importante do mundo antigo, tornando-se referência para as demais igrejas locais que iam sendo criadas. Na medida em que o cristianismo avançava na história, essas sedes tornavam-se uma espécie de igreja-mãe para as demais, centros de onde emanavam costumes e orientações para um conjunto de igrejas locais.
Pode-se dizer que foi a partir do oriente que o cristianismo tomou forma própria e se expandiu para o ocidente, concretamente para a Europa e, gradativamente, para outras partes do mundo. Portanto, conhecer as tradições cristãs orientais – os ritos, a teologia e as igrejas – é, de algum modo, voltar para o tempo e o lugar que carregam o germe mais arcaico do cristianismo; é voltar para as próprias fontes e beber delas, o que pode ajudar a compreender nossas origens e muito do que hoje vivenciamos. Assim diz o Vaticano II:
Com efeito, ilustres em razão da sua veneranda antiguidade, nelas brilha aquela tradição que vem dos Apóstolos através dos Padres e que constitui parte de seu patrimônio divinamente revelado e indiviso da Igreja universal (Orientalium ecclesiarum, 2).
O mundo ocidental é não somente autocentrado em sua cultura, mas foi sendo construído, muitas vezes, em oposição ao oriente, desde a época das cruzadas até a hegemonia econômica do capitalismo, passando pelas desavenças entre Roma e Constantinopla na luta pela hegemonia política desses territórios. As identidades culturais (e, por conseguinte, as religiosas) são constituídas não a partir de si mesmas, mas a partir da relação com as diferenças, quando o um sujeito se distingue do outro sujeito numa espécie de jogo de espelhos de negação-afirmação das diferenças. É nesse sentido que, para muitos especialistas, o oriente é, na verdade, uma invenção do ocidente. Há que pensar, portanto, no jogo histórico (político e cultural) que distinguiu sempre mais o catolicismo do oriente do catolicismo do ocidente. E a Igreja católica do ocidente foi vendo na Igreja do oriente aquilo que não era ela própria, como a diferença distante, exótica e até mesmo ameaçadora para sua identidade. A grande separação religiosa entre ocidente e oriente católicos (1051) não pode ser compreendida sem esse jogo histórico marcado por ímpetos políticos de construção de hegemonias.
Ainda vivenciamos um catolicismo majoritariamente ocidental que esquece sua cara metade do oriente ou, mais precisamente, desvincula-se de sua irmã mais velha. A consciência da universalidade (catolicidade) da igreja exige, ao contrário do que se pensa e se pratica regularmente, assumir suas expressões distintas, no caso as expressões orientais. O diálogo com as diferenças demarcou todo o processo conciliar – das discussões às deliberações dos documentos – e tornou-se, de fato, o caminho a ser trilhado por todos os sujeitos eclesiais dentro do catolicismo. O Vaticano II abriu uma era de diálogo interno no catolicismo e no cristianismo e de diálogo com as culturas. Ainda damos os passos tímidos nesse propósito. A segurança da identidade definida e, muitas vezes, rígida se impõe sobre o risco da construção permanente no diálogo com as diferenças.
No caso do Brasil, essa mentalidade latina ainda é mais nítida, tendo em vista a presença apenas residual das tradições orientais em nosso contexto. De fato, em termos mundiais essas tradições configuradas e institucionalizadas em um leque numeroso e confuso de igrejas ortodoxas, de igrejas autocéfalas e de igrejas católicas orientais são uma espécie de negação da identidade e da hegemonia ocidental-católica. Todas elas exigem da igreja latina um exame de seus modos de pensar e agir, modos centralizados no Pontífice Romano e em sua Cúria. As igrejas pensadas e organizadas em torno dos Patriarcas com seus sínodos autônomos quebram o centralismo romano tão assentado em nosso imaginário eclesial e tão operante na gestão eclesiástica católica romana. No seu propósito de reforma da igreja o Papa Francisco retoma a orientação conciliar e reconhece o valor das igrejas orientais para uma reforma do próprio papado, por demais centralizado:
O Concilio Vaticano II afirmou que, à semelhança das antigas igrejas patriarcais, as conferências episcopais podem “aportar uma contribuição múltipla e fecunda, para que o sentimento colegial leve a aplicações concretas” [...]. Uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária (Evangelii gaudium, 32).
As tradições orientais foram sendo construídas ao longo do tempo – de uma longa temporalidade – e esgalhando-se em ritos e igrejas ortodoxas e católicas, sendo que cada qual preservou a marca de línguas, de estéticas, de teologias e de liturgias do mundo antigo, marcas que hoje testemunham a vida de povos e culturas que já não existem mais. Alexandria, Constantinopla, Antioquia são cidades antigas que deram lugar a novas civilizações, na medida em que a história avançava. Nesse sentido, os ritos orientais são memórias ativas do passado, testemunhos de um cristianismo que se inseriu nas diversas culturas e por dentro delas foi sendo constituído com facetas diversas. A tão almejada enculturação do Evangelho de nossos dias possui essa escola concreta a ser conhecida e examinada, não como modelo fixo a ser copiado, mas como possibilidade de o cristianismo continuar inserindo-se dentro das culturas contemporâneas, aprendendo efetivamente delas e se comunicando através delas. A existência das igrejas orientais ensina o cristianismo não a simplesmente preservar um passado original – por razões tradicionais ou tradicionalistas – mas a assumir a dinâmica da diversidade como inerente a sua missão evangelizadora. Fora da cultura latina existem, como no passado, outras culturas que clamam por reconhecimento, acolhida e diálogo por parte da Igreja atual.
As igrejas orientais – as católicas e as ortodoxas – participam de cinco grandes matrizes eclesiais (modelos de pensamento, de liturgia e de organização eclesial) que se arrancam do mundo antigo e avançam pelo tempo. São as matrizes armênia, caldeia, bizantina, antioquena e alexandrina. Cada matriz recebe o nome genérico de rito e agrega em sua especificidade igrejas ortodoxas e católicas e ritos menores realizados em várias línguas. O caso mais emblemático é o rito bizantino que é executado não somente em grego, mas também em árabe, eslavo, russo etc. Dele brotam as igrejas/ritos católicos greco-melquita, ucraniano e russo presentes no Brasil. Cada qual preserva os resíduos vivos das igrejas do mundo antigo; são expressões atuais de um passado que se foi e formas de agregação de povos que se espalharam pelo planeta nos processos migratórias que povoavam o novo mundo. Em muitos casos, os ritos orientais são o que restou dessas identidades culturais dispersas e assimiladas pelas culturas ocidentais dominantes. As imigrações orientais que buscaram o Brasil como nova terra para habitar e sobreviver deixaram suas marcas culturais e religiosas nesses rituais ainda vivos.
As migrações orientais síria e libanesa, armênia, ucraniana e, em menor escala, russa, trouxeram para o Brasil essas matrizes eclesiais e aqui plantaram suas comunidades religiosas junto das comunidades étnicas que se agregavam, sobretudo nas grandes cidades em formação. As igrejas ortodoxas – em maior número – e as igrejas católicas se encontram em alguns pontos do país, de modo particular na cidade de São Paulo. Os templos são muitas vezes escondidos no meio da selva de pedra, não mais desconhecidos que a própria tradição que ali sobrevive quase invisível, sobretudo nos rituais sacramentais. Contudo, quem se adentrar nesses edifícios perceberá logo a diferença com relação às igrejas latinas. A estrutura do presbitério, os ícones (e a ausência das imagens), o nome do padroeiro pouco conhecido etc. revelam as diferenças e as origens não latinas. E a liturgia não menos: a língua (grega, árabe, síria, armênia, ucraniana etc.), a sequência ritual, os ministros do altar, as vestes litúrgicas e as músicas. A diferença litúrgica é contrastante com a liturgia latina. Trata-se, de fato, de outra matriz eclesial, distinta e distante daquela que rege e é comum no rito latino católico. O brasileiro que desconhece a história e os significados da tradição se sente, de fato, em outro mundo e terá dificuldade de captar as riquezas ali presentes.
Contudo, a cultura urbana atual, que parece combinar contraditoriamente duas posturas em relação às diferenças culturais, rejeição e atração, acomoda em sua lógica essas distintas matrizes. A rejeição pode levar à xenofobia – o medo da diferença – que ameaça a identidade própria, caso comum de cristãos em relação aos cultos afros. A atração diz respeito ao que é exótico. O exotismo religioso carrega, muitas vezes, um atrativo de mistério como uma língua estranha que remete para um mundo transcendente e incompreensivo aos ouvidos humanos. Qual será a postura cristã correta? Nem rejeição e nem simples atração pelo exótico: apenas respeito e diálogo com as diferenças. O diálogo exige entrar em contato, acolher e buscar conhecer o outro, mesmo quando é muito estranho. O respeito significa deixar que o outro seja outro com toda a sua especificidade, direito e beleza, mesmo que ele se mostre como completamente diferente de nosso mundo.
Não será um esforço em vão aproximar-se com respeito e diálogo das igrejas orientais. Será necessário ir além do exótico que atrai com seu inédito e instala uma experiência de ruptura sagrada. Não se trata, evidentemente, de trocar de identidade ou de buscar uma experiência religiosa diferente para romper com a rotina devocional e espiritual. Trata-se de ajudar na tomadas de consciência de que nossa matriz eclesial latina é apenas uma dentre outras que compõem a diversidade católica; aprender que dentro da nossa própria igreja existem diversidades que compõem o seu todo e buscar crescer na acolhida das diferenças religiosas que acompanham nossa vida cultural atual conectada com o planeta, feito de múltiplas expressões culturais.
O Brasil abriga no âmbito católico quatro ritos orientais principais, o greco-melquita, o armênio, o maronita e o ucraniano, e outros ritos presentes em menor número em ponto isolados do país. Os quatro ritos possuem status de diocese e contam com bispos próprios, os restantes contam com um bispo local – no caso o Arcebispo de Belo Horizonte – como prelado responsável. A presença desses ritos no Brasil liga-se diretamente às ondas migratórias de povos orientais para nossa terra; testemunham o esforço de preservação das identidades culturais e religiosas em outra cultura e em uma igreja de rito exclusivamente latino. Esses ritos são hoje os resíduos de outro tempo e de lugares distantes em plena metrópole hipermoderna, marcada pelo anonimato, pelo individualismo, pela secularização e pelo espetáculo. As raízes culturais dos povos migrantes são preservadas nessas tradições religiosas que plantaram em nossa terra suas memórias e seus sonhos. Trocar de terra sem perder sua identidade foi sempre o grande desafio das migrações de ontem e de hoje. As malas dos migrantes transportaram não somente bens materiais essenciais, mas também valores essenciais, à sobrevivência no novo mundo. Nesse sentido, a preservação das tradições religiosas é o esforço de manter os segredos mais íntimos do povo e preservar aquilo que o tempo e a distância não podem corromper ou dispersar.
Com efeito, as culturas não são um conjunto estático de valores e costumes. Ao contrário, compõem um processo dinâmico de relações que confrontam os iguais e os diferentes no interior de uma história sempre em transformação. As tradições religiosas não fogem dessa dinâmica de fundo e por dentro dela reinventam a si mesmas no esforço de preservar o que julgam ser essencial e assimilar do novo contexto o que julgam estratégico. A negociação entre o passado e o presente faz parte de todas as culturas e, de modo direto e dramático, para as tradições religiosas que, por natureza e missão, preservem e comunicam verdades advindas do passado: de um passado que se apresenta como fonte de sentido e de vida. Os ritos orientais inseridos no mundo ocidental, latino, urbano e hipermoderno se deparam de modo direto com esse desafio. O futuro dirá, por certo, quais foram os rumos dessas expressões cristãs. No entanto, nenhuma tradição é preservação estática de uma herança fixa e acabada recebida do passado; é sempre construção presente de heranças do passado, mesmo quando a preservação se faz com intuitos e estratégias exclusivamente conservadoras.
Os ritos não latinos estão entre nós e fazem parte da comunhão eclesial maior que nos liga como iguais e diferentes. O mesmo corpo eclesial é feito de diversidades. Cada rito é mais que preservação de uma memória identitária, é expressão da inserção cultural do cristianismo e apelo ao mistério da comunhão eclesial que se faz na união do diverso. A busca do exótico e do tradicional não pode ser um valor para os que se aproximam dessas expressões antigas, como expressões arcanas de um sagrado mais destilado nos dias de hoje. Os povos expressam sua fé segundo seus costumes; falam com Deus em suas linguagens e dialogam com ele a partir de suas necessidades e desejos concretos. O Vaticano II ensinou que a liturgia é o ponto de chegada e o ponto de partida da vida da igreja. Os ritos são meios adequados a essa expressão sempre mais autêntica da fé em cada tempo e lugar. Assim também são os ritos orientais com seus sujeitos culturais. O mistério de onde brotam as expressões de fé é sempre maior; constitui a fonte de onde brotam as diversidades e não se reduz a apenas uma delas. As diferenças de linguagem religiosa – tradições, ritos e normas – são construções históricas e não o próprio mistério. A salvação oferecida por Deus é o mistério que se encarna no tempo e no espaço, mistério que se faz carne, graça que se faz cultura.
O presente dossiê de Ciberteologia quer trazer à luz os ritos orientais católicos presentes em nosso país. Os Artigos que tratam dessas tradições contaram com a contribuição de autores participantes de suas respectivas igrejas. Agradecemos às generosas e ricas participações. A ausência de um Artigo sobre os maronitas é compensada com um texto extraído do site oficial da Eparquia do Brasil, publicado na Seção Documentos. O texto fornece informações históricas a respeito da origem e formação dessa rica tradição. O modesto dossiê quer ser apenas uma porta de entrada para essa realidade eclesial complexa e profunda. Que o leitor seja despertado nessa curiosidade e sensibilizado para o diálogo com as diferenças inerentes ao cristianismo. Na Seção Saídas e Fronteiras disponibilizamos documentos emanados da Assembleia Eclesial realizada em novembro passado no México.
Os ritos orientais ensinam que a diversidade é um fato e um valor dentro do cristianismo. São resíduos vivos de um passado e de identidades distante que nos convocam ao diálogo permanente com as diferenças culturais que fazem parte da realidade humana em todo tempo e lugar.
A graça supõe a cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe (Evangelii gaudium, 115).
João Décio Passos
Editor