Pátria amada idolatrada, 200 anos | Editorial | Ciberteologia - Revista de Teologia e Cultura

EDITORIAL

O ano de 2022 celebra os 200 anos da nação brasileira. De modo inédito, porém politicamente compreensível, nasceu o país independente da Coroa portuguesa sob as mãos do próprio Príncipe que governava o Reino Unido de Portugal e Algarves. Nascemos de cima para baixo, como fruto de uma estratégia de preservação do poder por parte da monarquia aqui instalada desde a fuga da família real diante da invasão napoleônica em Portugal em 1808. Desde então, a Colônia nunca mais foi a mesma e, sob o comando da monarquia aqui instalada, foi adquirindo autonomia em relação à Coroa. O ano de 1822 foi, de fato, um ponto de chegada desse processo de independência que já envolvia toda a América espanhola. No caso do Brasil, poderia ser ou pegar ou perder para o regime monárquico aqui representado pelo Príncipe regente que se encontrava pressionado entre os movimentos de independência nacional e os decretos da corte constitucional portuguesa que visavam recolar o Brasil nas velhas regras da colônia. A condição de colônia havia sido superada com a vinda de D. João VI e, por conseguinte, com a abertura dos portos para o comércio das nações diretamente com o Brasil em 1808. Desde a retomada da monarquia e o retorno de Dom João a Portugal, as pressões pela recolonização econômica do Brasil foram intensificadas e empurraram o Príncipe para a independência de Portugal. Para além desse dado conjuntural restará sempre a pergunta pelos bastidores onde a independência foi, por certo, conversada entre família. O fato é que na cena pintada como heroica na margem do riacho Ipiranga em São Paulo o país nasceu pela decisão do Príncipe, longe da corte carioca, longe das ruas e longe do povo.


A saga Brasil se iniciava, assim, de modo original. Nascia um país sul americano com regime monárquico. Como todos os territórios colonizados no sul do planeta, o Brasil teve como desafio construir as condições de sobrevivência econômica e política, após os séculos de exploração colonial. Nenhuma nova nação sai incólume desse processo expropriador que marca as colonizações modernas. E, no caso de colônia de país subalterno ao Império inglês, como era Portugal, os processos de independência ainda se mostraram mais desafiantes. País independente procedente de um país dependente, pobre filho de pai endividado. Como as demais ex-colônias, o Brasil carregou em sua história as heranças econômicas e políticas de terra explorada e dependente, apropriada por elites que se revezam no poder.
A história de dependência econômica marcou esses duzentos anos em suas diferentes fases ou conjunturas históricas. Não faltaram crises agudas, reflexas das crises mundiais, por um lado, e produzidas nacionalmente, por outro. A construção do país próspero e estável esteve como horizonte e urgência dos governos que se sucederam nesses duzentos anos. A pátria amada foi sonhada a cada momento como mito e como utopia que fosse capaz de traduzir-se em vida real, enquanto as contradições sociais jamais foram superadas com políticas reparadoras e com o protagonismo efetivo do povo.


Não faltaram, por conseguinte, regimes autoritários, também reflexos de modelos praticados no estrangeiro, tendenciais da América Latina e sempre contando com as elites nacionais, jamais dispostas ao sacrifício mínimo de seus privilégios. Desde a república, o país seguiu por esse percurso com raros momentos de emergência do povo no poder, quase sempre vigiado como suspeita de comunismo. A cada governo de intencionalidade popular, as elites encontram os meios narrativos e estratégicos de conclamar o povo à volta ao regime seguro para a pátria, para a família e para a religião. O povo não tem sido o sujeito efetivo dos projetos políticos; apenas uma ideia repetida pelos donos do poder econômico e político para obter apoio nos momentos eleitorais. Em nome do povo e com o povo os líderes populistas aparecem em um eterno retorno pelo continente latino-americano. O povo das ideologias populistas é sempre chamado a sustentar o poder salvador; é uma imagem de oprimidos que necessitam de redentores, de ameaçados que necessitam de segurança e de merecedores de um novo tempo que está por chegar pelas mãos do líder providente.


No caso do Brasil, o último governo se apresentou como salvador da pátria ameaçada e de modo original compôs um modus operandi que pairou sobre as regras básicas da democracia e dos direitos sociais e humanos. Deus, pátria e família tem sido o brado renitente das recaídas autoritárias e salvadoras da nação livre e cristã. O fascismo traduzido pelos Camisas Verdes do integralismo, foi o momento mais significativo de utilização dessa verdade política religiosamente fundamentada. O caminho de superação da crise significava retomar a nação cristã – católica, evidentemente – onde a família é o centro da vida social e não o Estado ou qualquer outra instância social. Sobre essa raiz transcendente assenta-se o Estado com suas instituições: a Pátria como sentimento comum que agrega a todos no mesmo espírito e funda a própria nação, a família como unidade social primordial, natural e fundada por Deus e, como fundamento primeiro, o próprio Deus. Na ligação direta com esses fundamentos os líderes autoritários buscam os modos autocráticos de exercer o poder. Líder-promessa-povo constitui o triple da regra de governo desse viés em todos os cantos do planeta em seus mais variados modelos. Deus constitui o fundamento primeiro que tudo justifica. As crenças teocráticas jamais abandonaram o ocidente moderno, mesmo quando abandonou por razões teóricas ou práticas o Deus judaico-cristão.


De fato, elitismo e populismo escrevem juntos a mesma história dos donos do poder em nosso país. Ganhar o apoio popular é o segredo da democracia, assim como das ditaduras nos tempos modernos. As conjunturas e as estratégias se modificam e o princípio permanece. O pode vem do povo, ainda que o povo o delegue a um tirano. A diferença reside, assim, no papel das instituições democráticas que garante ao povo representações efetivas. O fundamento da democracia é sempre o parâmetro daqueles que rompem com suas regras instituídas e apresentam um novo regime exercido em nome do povo, no lugar do povo e diretamente ligado ao povo. Poderes republicanos, Constituição, Estado laico, Direitos iguais etc. tornam-se, no caso dos populismos, instituições relativas e de menor importância perante os líderes portadores de salvação para a pátria ameaçada. Antes e acima das velhas instituições, quase sempre desacreditadas, mais vale a promessa de mudança anunciada pelo líder portador de dons extraordinários para governar a nação em crise. Afinal, o governo que tem Deus como fundamento não terá necessidade alguma de contar com qualquer outra instância que seja mais legitima ou necessária. Perante esse fundamento supremo, todas as demais instituições se tornam, de fato, relativas e estão predispostas a serem desconsideradas ou despendidas.

Vale lembrar que o próprio nazismo contou com esses fundamentos supremos, sejam os de matriz ocultista estruturantes do mito ariano, sejam os de matriz cristã – obviamente desjudaizados – da Igreja nacional intentada por Hitler. Não foi diferente com os regimes autoritários contemporâneos de Franco na Espanha, de Salazar em Portugal e de Getúlio no Brasil. Não parece ser possível estabelecer um regime de governo autocrático sem Deus e sem o Povo. O líder faz a ligação direta como mediador escolhido entre a divindade e o povo. É sempre o portador direto de uma boa nova de libertação que o coloca como mediador exclusivo e autorizado entre os dois mundos, o transcendente absoluto e o imanente precário. E nessa condição o líder extraordinário encontra legitimidade e fôlego para governar, até que a história mostre em suas contradições ou em sua inevitável rotina a precariedade real desse propósito e, via de regra, as suas consequências catastróficas. É nessa linha que vale recordar a tipologia weberiana de dominação sugerida por Max Weber, na qual o líder carismático se legitima precisamente como possuidor de dons extraordinários. E esse encontra sua atuação em uma condição que, segundo o sociólogo, tem como marca o entusiasmo, a indigência e a esperança. A circularidade entre as promessas do líder as expectativas populares são construídas nessa triple postura que torna o líder um portador imprescindível da solução histórico-salvífica. A indigência expressa a crise real/construída que instaura uma precariedade tal que exige soluções salvíficas com fundamentos absolutos capazes de realizar o promete. A esperança se faz na própria oferta de solução, certa por advir de uma fonte sagrada transcendente que jamais falha e que realiza por si mesma o que promete. A palavra o líder encarna essa realidade profética onde desaparece qualquer distância entre o dito e o realizado. O entusiasmo constitui a atitude de fé que agrega a todos em torno do líder e de sua promessa, para além de todas as evidências lógicas ou empíricas exigidas pelo pensamento racional. Não há o que questionar ou verificar no projeto do líder salvador da pátria. A filósofa Hannah Arendt constatava precisamente essa atitude no líder totalitário: “A principal qualificação de um líder de massas é a sua infinita infalibilidade; jamais pode admitir que errou” (Origens do totalitarismo, p. 398).

As bolhas sociais hoje estruturadas virtualmente agregam de forma eficiente e ágil os membros de grupos políticos autoritários; terra de ninguém que legitima todas as formas de egocentrismo intolerante; grupo organizado sem endereço e com forte poder de mobilização e reprodução instantânea; comunidade vinculada pela lógica homofílica – amor ao igual – e comunidade autorreferenciada que se reproduz em suas próprias informações, consideradas por si mesmas verdadeiras. A semelhança comportamental com os regimes totalitários estudados Arendt é surpreendente:


[...] dentro da estrutura organizacional do movimento, enquanto ele permanece inteiro, os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parece ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou o medo da morte (Origens do totalitarismo, p. 358).


Os grupos sociais e os governos de ultradireita têm ensaiada a volta de regimes autoritários/populistas que navegam sob a crise da democracia formal e das decepções por uma suposta corrupção estrutural desse regime. A única saída residiria, segundo afirmam, em um líder forte que tem sua autoridade diretamente vinculada ao sobrenatural. O governo brasileiro encenou esse script de forma caricata. Apresentou-se como comandado por um militar reformado enviado por Deus para salvar o país da perdição final: perdição econômica, política, cultual e religiosa. Com uma base religiosa (fundamentalista e tradicionalista), majoritariamente pentecostal e com uma equipe de governo de viés clerical navegou rompendo com o que pode em suas posturas e estratégias negacionistas, conspiracionistas e golpistas. As observações de Arendt se confirmam de modo exemplar, quando se verifica o apoio de suas bases. Para além de qualquer evidência empírica ou lógica o capitão reformado permanece infalível e eficiente; o único capaz de salvar o país e o modelo da ética e da eficiência. A denominação mito, a ele atribuída pelos seguidores, não é um simples apelido ou metáfora. É, de fato, uma convicção sobre sua natureza política de viés sobrenatural, acima dos mortais comuns e dos líderes modernos que governam a partir de regras e de instituições. O mito não falha e não morre. Suas posturas são perfeitas e suas ações sempre eficazes. Os que dele discordam são nada mais que inimigos; inimigos dele próprio, da nação, da verdade e de Deus. Esses devem ser evitados e, de algum modo, eliminados. É por essa razão que Freud observava que todo mito historicizado é violente. O mito está acima dos desgastes do tempo e das datas previstas de governo. Por isso deverá também perpetuar-se no poder e já antecipa que qualquer outra solução constitui fraude. As eleições serão necessariamente fraudulentas porque o mito tem o direito (a missão sobrenatural) de permanecer exercendo sua missão no governo.


Chegamos aos 200 anos com uma tragédia política instalada no governo e no Estado brasileiro. A tragédia política foi escolhida pelo eleitor, uma vez já conhecida pelas promessas – não por qualquer projeto – do candidato inusitado e original. O retrocesso histórico vai muito além dos espectros ideológicos de esquerda e direita e, até mesmo, de modelos econômicos mais ou menos liberais. A questão central que se mostra é o próprio sentido e valor das instituições democráticas e dos valores humanitários que compuseram as civilizações pelos séculos e, de forma institucional, nos tempos modernos. Os valores da liberdade, dos direitos sociais, das ciências, das relações multilaterais entre as nações e da ética foram relativizados e desqualificados como coisa de comunistas e de “marxismo cultural”. Conquistas legais, instituições democráticas e direitos sociais supostamente definitivos e irreversíveis foram desconsideradas, relativizadas e, muitas vezes, submetidas ao deboche e ao intento de golpe. O que o Papa Francisco observou em sua última Encíclica social não poderia ser mais verdadeiro. A história dá sinais de retrocessos, os sonhos estão desfeitos em pedaços:


Reacendem-se conflitos anacrônicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais. Isto lembra-nos que «cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o caminho. O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia. Não é possível contentar-se com o que já se obteve no passado nem instalar-se a gozá-lo como se esta situação nos levasse a ignorar que muitos dos nossos irmãos ainda sofrem situações de injustiça que nos interpelam a todos (Fratelii tutti, 11).


A história passa e tudo traga em suas rotinas implacáveis. A eficiência dos seres míticos mostra sua falácia. No entanto os adeptos permanecem com suas convicções políticas. Não será diferente nessa conjuntura nacional. Jair Messias Bolsonaro vai passar, o bolsonarismo ainda permanecerá. A história nos consola e nos interpela com os exemplos de fanatismos do passado. O resultado histórico dessa opção política que marcou o país ainda está por configurar de modo concreto. O futuro vai narrar com mais objetividade e com vergonha esses anos de retrocesso humanitário. O desafio da reconstrução política, ética, humana e social do país está posto a nossa frente, antes e acima das reconstruções sociais e econômicas. As lições políticas dessa conjuntura devem ser levadas a sério por todos os cidadãos de boa vontade, por todos os sujeitos éticos e, de modo direto, por aqueles que exercem uma função de liderança no mundo da política, da cultura e da ciência. Como relembra o Papa, “cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas”.

O Brasil se encontra em um momento de retomada política e ética que exigirá de todos uma autêntica reconstrução. A educação política é urgente, como também é urgente uma retomada do senso de realidade que supere as negações cada vez mais legitimadas sobre os fatos históricos e os fatos científicos. A crise instalada no governo carrega um sentido de superação: como ponto de revelação das contradições sociais e culturais que desconhecíamos ou julgávamos politicamente impraticáveis. O governo Bolsonaro expôs a olho nu as percepções sociais e políticas conservadoras de uma parcela considerável de brasileiros. Os desafios de uma nação política autenticamente democrática e, evidentemente, de formação de consciências pautadas pela liberdade e amantes da democracia estão postos a todos os sujeitos responsáveis pelo bem comum e pelo Estado de direito. Há um Brasil a ser construído urgentemente.


Na saga do Brasil livre e justo, muitos brasileiros ofereceram sua contribuição. Nesse número faz-se a necessária memória de Dom Claudio Hummes, falecido em julho passado. Bispo em Santo André assumiu nos anos de chumbo a luta operária como missão evangélica em confronto direto com o regime militar. Nos últimos tempos tornou-se referência na defesa da Amazônia, das florestas e dos povos, em sintonia direta com a Laudato Si’ do Papa Francisco. Dom Cláudio globalizou-se em suas posturas e ministérios e contribuiu com seu carisma franciscano na identidade do pontificado do Papa que deveria reformar a Igreja. Com o Papa Francisco ecoam para toda Igreja suas palavras carregadas de urgência e profecia: Não se esqueça dos pobres!

João Décio Passos
Editor

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