EDITORIAL
Não é possível compreender qualquer sistema teológico sem conhecer o contexto do qual emergiu e dentro do qual foi sendo consolidado. As ideias estão vinculadas à realidade; não nascem por pura exigência do intelecto ou como formulação abstratas sem enraizamento na história. A longa história de todas as construções culturais testemunha por si mesma essa verdade. Ainda que no campo das ideias, das doutrinas e das normas seja comum a afirmação que as justifique como perenes e eternas, na verdade elas são construídas no decorrer do tempo. A linha do tempo se bem examinada revela que as formulações são datadas: elas não existiam até que começaram, por alguma razão, a existir e a influenciar sujeitos e grupos. A sociologia do conhecimento vai um pouco além e ensina que, todas as ideias, são elaboradas a partir dos interesses dos sujeitos que as constroem em cada tempo e espaço. Por mais abstratas e puras que sejam, as ideias são produzidas e reproduzidas porque são julgadas importantes pelos que as formulam e pelos que as recepcionam. Por esta razão, muitas ideias que eram relevantes no passado podem desaparecer por se tornarem superadas ou irrelevantes.
Com a teologia não é diferente. Os modelos vão sendo construídos no decorrer do tempo com intencionalidades explícitas ou implícitas, conscientes ou inconscientes da parte de seus formuladores. Todos eles se encontram vinculados aos contextos da época: às necessidades, aos recursos teóricos e metodológicos disponíveis, às interrogações mais urgentes, aos interesses dos formuladores, interesses mais conservadores ou mais transformadores etc. Pode-se, assim, localizar os modelos teológicos vinculados ao mundo antigo, como a famosa Escola de Alexandria e o sistema de Agostinho, os modelos medievais, como o caso de Tomás de Aquino, os modelos contemporâneos que se vinculam diretamente às condições do mundo moderno, e assim por diante. Trata-se, antes de tudo, de uma lei histórica e não de um capricho de analistas. Os seres humanos pensam a partir de onde os pés pisam. As teologias são construídas dentro dos contextos econômicos, sociais, culturais e religiosos.
Com efeito, são necessárias duas posturas fundamentais para a construção de um modelo original. Primeiramente, a disponibilidade e o esforço para pensar, ou seja, para questionar e refazer o que já foi pensado, a acolhida e o diálogo com as formulações da época, o exercício para sistematizar e ensinar. No mundo pré-moderno bastava esta disposição e este empenho para o labor teológico. No âmbito da racionalidade teórica e especulativa, o caminho da elaboração teológica seguia o mesmo método. No mundo moderno coloca-se uma segunda exigência: é preciso saber onde os pés pisam. Noutros termos, a consciência histórica sobre o lugar da elaboração das ideias se mostra indispensável, sob a pena de reproduzir ilusões e abstrações. Como as demais ciências humanas, a teologia se mostra como formulação e proposição de modelos historicamente situados. Mesmo que determinados modelos se apresentem como os verdadeiros (os únicos ou os melhores), sobretudo quando elaborados por parte das autoridades responsáveis pelas ortodoxias, eles, são, tanto quanto outros, elaborados a partir de um lugar concreto: lugar histórico, social e eclesial. Esta percepção epistemológica nasce da percepção histórico-social que o pensamento moderno foi gradativamente conquistando, na medida em que avançava em suas elaborações. A consciência histórica exige que se situem todos os modelos teóricos e metodológicos no tempo e no espaço, mesmo quando se apresentam como puros e exatos, seja por situar-se no campo de um conhecimento revelado, de um conhecimento exato ou de uma tecnologia eficiente. Em todos esses casos uma espécie de pensamento essencialista reivindica um status de supra-histórico e modo a dispensar sua relatividade ao tempo e espaço em que foram elaborados.
Hoje se sabe que os contextos produzem regimes de verdade, dos mais aos menos rigorosos e bem sistematizados. No caso da teologia, a própria pluralidade de modelos visíveis e operantes desde o século passado demonstra essa verdade. Os autores com seus referidos sistemas são filhos de seus respectivos contextos. O grande engano vem da perpetuação dos modelos como se fossem imutáveis e eternos, como comportam os tradicionalistas. Todos os modelos são circunstanciados no tempo e no espaço.
O modelo teológico – na verdade, os modelos – construído na América Latina, assumido e denominado como Teologia da Libertação, nasceu como um modo deliberadamente contextual de fazer teologia. Foi de dentro das condições históricas do continente que os teólogos elaboraram suas reflexões e foram, progressivamente, formulando um sistema com fisionomia teórica e metodológica particular. O fato foi inédito na história das Igrejas e da própria teologia, sendo que os sistemas clássicos e os contemporâneos elaborados até então estavam localizados no hemisfério norte, sobretudo no continente europeu. Uma teologia-latino americana era, nesse sentido, uma ousadia perante os lugares tradicionais e comuns desse labor, assim como uma ruptura com os métodos utilizados até então. De uma teologia reflexa e reprodutivista, o continente passou a produzir sua própria reflexão, de dentro de suas condições contextuais. E não se tratava apenas de um vínculo inevitável com as bases contextuais, mas da afirmação consciente de um modelo de reflexão que assumia o contexto latino-americano marcado pela pobreza e pela opressão política. A teologia da libertação foi sendo elaborada com a clara consciência do papel da religião, das Igrejas e da reflexão da fé como crítica das condições locais e anúncio de outro mundo possível, justo e fraterno.
A circularidade entre a fé e a realidade já havia sido colocada e praticada pelo Vaticano II com o princípio e a metodologia dos sinais dos tempos.
É dever de todo povo de Deus e sobretudo dos pastores e teólogos, com a ajuda do Espírito Santo, saber ouvir, discernir e interpretar as várias linguagens do nosso tempo, e julgá-las à luz, da palavra de Deus, de modo que a Verdade revelada possa ser cada vez mais intimamente percebida, melhor compreendida e apresentada de um modo mais conveniente (GS 44).
A teologia praticada na América Latina aplicou com rapidez e concreticidade esta orientação e metodologia conciliar. Os apelos da realidade provocaram novas leituras dos conteúdos da fé e os apelos da fé produziram visões e posturas éticas e políticas de cristãos e cristãs em todo o continente.
Os autores desse modelo fecundo e amplo de pensamento teológico compuseram uma frente de reflexão militante contando com figuras das mais variadas competências e vigor intelectual. Pode-se falar em uma multidão de teólogos e teólogas que assumiram a causa da libertação dos pobres e dos excluídos como princípio, método e finalidade da reflexão. A galeria de autores e autoras é volumosa e diversificada. A origem da reflexão e do modelo teológico permanece aberta às hipóteses e investigações. Sabe-se que todo sistema costuma nascer progressivamente a partir de autores e obras que vão preparando o que em algum momento adquire o status consensual de marco original. É o que ocorre com a obra Teologia da Libertação do teólogo peruano Gustavo Gutiérrez de 1971. Sem dúvida a obra mais sistemática que lança o novo modelo para a Igreja, para a academia e para a sociedade. Contudo, a reflexão teológica local já vinha dando passos havia alguns anos. Vale citar algumas conhecidas contribuições, O Evangelho da revolução social de Carlos Josaphat, de 1962, de Enrique Dussel, a obra Hipótese para uma história da Igreja na América Latina de 1967 e a Teologia da esperança humana de Rubens Alves publicada em inglês de 1969. A paternidade da teologia latino-americana ficará, por certo, em aberto. O fato é que no epicentro do Vaticano II e na herança direta das teologias europeias, os teólogos latino-americanos souberam recriar a teologia em nosso continente. Não pode ser esquecido o fato de os teólogos deste viés participarem ativamente da conferência de Medellín em 1968. O Documento que resultou da Conferência assume em suas reflexões um pensamento teológico original já em marcha no continente; adota o método ver-julgar-agir com a fisionomia latino- -americana, assume a opção pelos pobres e define a missão profética da Igreja no continente da pobreza e da opressão. Assim diz o segundo parágrafo da Introdução do Documento final:
Assim sendo, não se acha “desviada”, mas “voltou-se para” o homem, consciente de que “para conhecer Deus é necessário conhecer o homem”. Pois Cristo é aquele em quem se manifesta o mistério do homem; procurou a Igreja compreender este momento histórico do homem latino-americano à Luz da Palavra, que é Cristo. Procurou ser iluminada por esta palavra para tomar consciência mais profunda do serviço que lhe incumbe prestar neste momento.
Desde o marco de Medellín, a teologia latino-americana avançou a passos largos e incorporou em suas reflexões os mais diversos objetos de estudo: teologia sistemática, teologia bíblica, teologia do político, história da Igreja, teologia do econômico etc. Não se tratava somente de mais um conjunto de reflexão ou de mais um modelo teórico-metodológico, mas de uma reflexão que avançava e se aprofundava em uma relação de retroalimentação com práticas eclesiais e sociais em diversos pontos do continente. Em cada realidade este modo de penar e viver a fé sem dicotomias foi adquirindo formatos próprios e formando levas significativas de pensadores. Nos anos setenta e oitenta o volume de reflexão podia exibir um grande acervo que permitia recolocar as questões clássicas e contemporâneas da fé dentro de um grande sistema observado pelo hemisfério norte como perigoso ou como modelo a ser aprendido. Vale ressaltar as reservas que vinham dos setores vigilantes da Cúria romana, de modo particular da Congregação para a Doutrina Católica. A condenação de autores e obras produzidas neste regime teórico-metodológico foi frequente e acompanhada por uma política restauradora dos episcopados. O resultado desta política está colocado hoje nas Igrejas da América Latina.
A história da teologia latino-americana conta hoje com um acervo volumoso e rico de reflexões que fazem parte da história da teologia e da própria tradição do cristianismo. A geração dos pioneiros já passou e conta com poucos testemunhos e teólogos em plena atividade. Nada de novo na dinâmica da história que passa. Se é verdade que, por um lado, as Igrejas do continente revelam os efeitos do controle de Roma sobre esta teologia, no avanço do tradicionalismo e no abandono da postura profética por parte de clérigos e leigos, por outro, a herança desta reflexão chegou de modo inusitado no torno de Pedro por meio do Papa latino-americano. A reforma inadiável da Igreja por ele empreitada desde sua eleição assenta-se sobre as orientações do Vaticano II com uma nítida perspectiva do que foi sua recepção na América Latina. O método básico adotado pelos padres conciliares havia recolocado a Igreja e, a teologia, num processo que incluía ao mesmo tempo a volta às fontes e a abertura e acolhimento da realidade presente. Nesta dinâmica, a reforma franciscana afirma a centralidade do “coração do Evangelho” e a abertura às periferias da humanidade, a começar dos mais pobres, como hermenêutica de seu projeto. A opção pelos pobres que havia sido colocada sob suspeita pela cúria romana, encontrou no magistério de Francisco um lugar central. “Este imperativo de ouvir o clamor dos pobres faz-se carne em nós, quando no mais íntimo de nós mesmos nos comovemos á vista do sofrimento alheio” (Evangelii gaudium 193). E trata-se de uma exigência vinculante para a fé cristã por ser inerente ao Evangelho. Continua Francisco: “É uma mensagem tão clara, tão direta, tão simples e eloquente que nenhuma hermenêutica eclesial tem o direito de relativizar” (Evangelii gaudium 194).
Se é fato que o grande movimento dos teólogos da América Latina se arrefeceu juntamente com as posturas proféticas da Igreja, também é verdade que triunfou pela boca do sucessor de Pedro como patrimônio da Igreja universal. Isso nos ensina que os modelos teológicos não são fixos e não têm donos, mas tem suas vidas ativas dentro de um processo histórico feito de previsibilidades e de surpresas.
Neste número, Ciberteologia pretende homenagear de modo direto três teólogos que construíram seus sistemas e vivenciaram seus magistérios no chão de nosso continente e ofereceram contribuições originais para a teologia local e mundial e que no ano de 2023 partiram para a plenitude da vida. Em 16 de julho partiu Franz Hinkelammert, em 5 de novembro, Enrique Dussel e, em 12 de novembro, José Maria Castillo. Os três grandes teólogos são exemplos emblemáticos de competência, originalidade e diversidade de modelos dentro daquele grande modelo metodológico. Franz Hinkelammert ofereceu uma abordagem original sobre as relações entre economia e teologia, tendo formação nas duas áreas. Sua crítica teológica do regime capitalista permanece provocante e atual quando o capital assume as formas mais disfarçadas e mágicas nos mecanismos digitais. Permanece mais do nunca urgente desvendar os mecanismos escondidos deste regime que idolatra o dinheiro. Enrique Dussel exemplifica o intelectual interdisciplinar, no caso teólogo, filósofo e historiador, com obras monumentais e todas as áreas. Será sempre a referência de uma racionalidade que se eleva do sul do planeta e rejeita todo tipo de colonização política e intelectual. José Maria Castillo vincular-se a América Latina a partir de sua convivência com os jesuítas de El Salvador. Foi um eco daquela teologia construída com o sangue dos mártires no regime necropolítico ali implantado. A sua insistência na humanidade de Deus constitui a alternativa que critica as teologias do domínio, centrada na imagem perversa do Deus todo poderoso.
Nessas três personalidades imortalizadas em suas obras e pensamentos podemos homenagear a geração de teólogos ligados à América Latina que vai passando como tudo o que é mortal. Todos eles apostaram suas vidas pela causa dos pobres em nome da fé; afirmaram a justiça como meta e caminho para os povos do continente; denunciaram todas as forças opressivas que negavam liberdade e vida para o povo do continente; entenderam a Igreja como povo de muitos povos e como servidora da humanidade concreta em cada tempo e lugar. O legado de cada qual permanecerá vivo na Igreja, nas academias e na sociedade e nos desautoriza, pela grandeza que contem e comunicam, a lamentar suas mortes; ao contrário, tamanha grandeza e coerência exigem de todos nós espírito de agradecimento e de aprendizado permanente. As obras de cada qual, desde agora, consideradas concluídas nos desafiam a examiná-las e delas retirar princípios, inspirações e métodos para continuarmos a tarefa de pensar a fé dentro das realidades atuais.
A guerra é fria para os que a fazem e quente para os que a sofrem. Coexistência pacífica para os que fabricam as armas; existência sangrenta para aqueles que são obrigados a comprá-las e usá-las (Enrique Dussel).
Em geral a vida santa significa libertar o corpo, entabular o diálogo com Deus numa linguagem material, e isso é a orientação do corpo para a vida. Não se conversa com Deus diretamente, de forma espiritualizada. Conversa-se com ele através do Espírito, que é a orientação do corpo para a vida. Conversa-se com Deus unicamente naquele templo que é o corpo (Franz Hinkelammert).
A o Deus que se nos revelou em Jesus pulverizou e aniquilou nossa desorientada sedução pelo divino, por tudo o que é grande e poderoso, pela força e pela grandeza, pelo domínio e pelo saber sem limites (José M. Castillo).
João Décio Passos
Editor