Um grande profeta surgiu entre nós! | Editorial | Ciberteologia - Revista de Teologia e Cultura

EDITORIAL

Um grande profeta surgiu entre nós!

 

O povo que acompanhava o enterro do filho único da viúva reconhece que Jesus é um grande profeta e que Deus visitara o seu povo. Jesus devolve a vida ao morto, mas, na verdade o devolve à mãe inconsolada com a perda. Jesus encheu-se compaixão pelos sofrimentos da viúva (Lc 7,13). O profeta escuta o choro do povo, tem compaixão do sofrimento e devolve a vida onde domina a morte. A profecia é encarnação na dor do outro. Na incerteza e no clamor que brota da dor e do sofrimento o profeta exerce seu ministério como dispensador da esperança e como parceiro solidário. Nas pegadas do profeta de Nazaré muitos seguidores se fizeram também profetas, penetraram no meio da multidão, escutaram o choro dos sofredores, limparam as lágrimas do povo, interromperam os cortejos de morte, ofereceram vida. Pelo profeta Deus visita o povo! No gesto profético a esperança renasce.

Os profetas fazem parte da história do povo de Deus, ou da tradição judaico-cristã que leva adiante o carisma primordial da misericórdia derramada por Deus em Jesus Cristo, dilacerado na cruz e redivivo pelo Espírito. O Deus de Jesus é misericórdia que faz brotar a vida, solidariedade com a dor que mata e faz chorar. Da dor do crucificado nasce a defesa da vida e a solidariedade com os sofredores; da cruz nasce a profecia que protesta contra a morte em todos os tempos e lugares e protesta contra todos os mecanismos que a constroem.

O serviço profético coincide com a presença dos pobres e dos desamparados. Onde há abrigos seguros, fortalezas, mansões e riquezas não há sequer necessidade de profetas. Há, sim, outros profissionais que visam assegurar a estabilidade e proteger os assegurados de todas as ameaças. São os burocratas dos sistemas seguros. Os nomes desses profissionais variam conforme a instituição a que se dedicam: banqueiros, senadores, seguradoras, doutores, governadores e sacerdotes etc. As instituições todas necessitam de seus peritos para assegurarem os seus mecanismos de reprodução dentro das sociedades; sem esses peritos elas não funcionam e nem sequer existem. Os peritos fazem as regras e se dedicam a cumpri-las, em nome das instituições, para além da vida concreta e das pessoas concretas que habitam nesses espaços regrados e ordenados. Os burocratas são, por definição, aqueles que administram as regras objetivas que existem acima dos interesses individuais, mas, também acima das dores individuais daqueles que nela habitam. Os burocratas administram os vivos e enterram os mortos conforme as regras estabelecidas; administram a vida e a morte com a mesma objetividade. Os profetas defendem a vida e “ressuscitam os mortos”. Os burocratas defendem os membros da instituição. Os profetas abrem as portas para os que estão fora dela. Os burocratas são curadores das tradições e das normas. Os profetas as transgridem em nome do choro dos pequenos; são curadores das feridas. Os burocratas insistem na verdade das coisas. Os profetas exercem a misericórdia. Os burocratas se vestem conforme os padrões estéticos que os distinguem dos demais. Os profetas vestem a roupa do povo simples e se confundem com a multidão.

A competência burocrática é verificada pelo exercício correto da função de preservar e fazer funcionar uma determinada instituição. A competência do profeta provém de sua capacidade de ver, aproximar-se e compadecer-se dos que anseiam por consolo e por vida. Por essa razão, os burocratas entendem a compaixão como fraqueza e demagogia. A profecia é, para eles, postura de fracos contraproducente ao funcionamento regular das instituições. O profeta é, quase sempre, burocraticamente incompetente, ortodoxamente infiel e socialmente desviado. O profeta é, no fim de tudo, um perigo político para a estabilidade das coisas, pois porta a mania de renovação daquilo que envelhece e diminui a felicidade de todos, particularmente dos mais infelizes. Enquanto os burocratas existem para preservar, os profetas nascem para modificar. Jeremias é enviado “contra as nações e reinos, para arrancar e derrubar, devastar e destruir, para construir e para plantar” (Jr 1,10). Por essa razão, as instituições costumam matar os profetas, inclusive, e talvez sobretudo, as instituições religiosas. Jesus reconhece essa dialética inerente à missão profética quando diz: “Jerusalém, Jerusalém que mata os profetas e apedreja os que te foram enviados” (Lc 13,34). A religião estruturada no templo com sua hierarquia sacerdotal, com seus rituais e com sua teologia oficial não suporta profetas como Jesus que “derruba o templo” (Jo 2,19) e se confronta com a oficialidade ali presente nos discursos e nas práticas religiosas.

O sacerdote não suporta a profecia e busca os meios de eliminar de alguma forma o profeta. Esse antagonismo tipológico não caracteriza somente o sistema religioso do judaísmo antigo ou mesmo das antigas tradições instituídas que regularmente tem que confrontar-se com líderes renovadores. Ele faz parte da regra das religiões instituídas como bem explicou o sociólogo francês Pierre Bourdieu. As figuras antagônicas tipificam o jogo inerente às tradições entre os funcionários oficiais que existem para preservá-la e aqueles que emergem no seio da mesma com a missão de renová-la e, antes disso, de destruí-la. O profeta é a figura carismática por natureza renovadora que se choca com a lógica da preservação. Ele nasce dentro da própria instituição, reivindicando a legitimidade de seu projeto em nome daquilo que fundamenta a mesma instituição. Por essa razão, o profeta derruba e edifica. Não se trata de um destrutivo anárquico que derruba para ver cair e não assume o compromisso de refazer. Trata-se de um destruidor que visa reconstruir de forma mais coerente a organização institucional para torná-la mais fiel aos seus princípios.

O jogo tenso entre preservadores e renovadores é inerente ao cristianismo. A natureza religiosa do cristianismo, organizado em instituições que levam adiante um carisma original, carrega essa tensão que termina sendo constitutiva de sua própria história. As institucionalizações – dos textos fundantes, das verdades da fé, dos rituais, das normas e das funções – são formas de garantir a continuidade do carisma da salvação, força vigorosa que vasa para além das institucionalizações e pede formas novas de expressão, sobretudo quando essas institucionalizações se cristalizam ou por alguma razão entre em crise. O profeta é o portador do carisma que quer voltar às fontes primeiras em nome da fidelidade perdida, esquecida, deturpada ou desgastada; é o renovador a partir do fundamento. Os reformadores que emergiram dentro do cristianismo são as expressões dessa dinâmica, sejam aqueles que conseguiram realizar seus propósitos dentro da instituição, sejam os que foram expurgados como hereges e refizeram a Igreja com outros processos de institucionalização.

Alguns profetas conseguiram a façanha de não serem mortos – condenados, expurgados ou literalmente mortos – dentro da rígida instituição católica com seus sacerdotes especialistas na manutenção da estrutura e da ordem. Alguns reformadores que fundaram ordens religiosas, como no caso mais emblemático de Francisco de Assis; alguns bispos, como Bartolomeu de las Casas, alguns teólogos como Tomás de Aquino, alguns Papas como João XXIII. Esses profetas conseguiram os raros equilíbrios, da sabedoria e da sagacidade de renovar por dentro, derrubar e edificar. Muitas circunstâncias lhe deram essa vantagem em relação a outros que foram expulsos e condenados como hereges. As instituições eclesiásticas tiveram que assimilar seus projetos renovadores, ainda que para muitos fossem sempre inconvenientes, traidores da tradição, heterodoxos e, até mesmo, hereges. As oposições atuais às reformas do Papa Francisco escrevem vivamente essa saga do controle religioso dos poderes e da verdade instituídos.

Na linha renovadora aberta pelo aggiornamento de João XXIII, muitos profetas se destacaram dentro da Igreja, de modo emblemático na América Latina. O processo de aggiornamento instaurou naturalmente uma luta pelo significado da renovação da Igreja, já dentro das sessões conciliares. Mas, instaurou um espírito renovador que legitimou igualmente aqueles que levaram adiante o carisma conciliar. Uma geração de renovadores, mais ou menos radicais, assumiram postos pelo continente afora; profetas da renovação conciliar que assumiram o carisma do Evangelho na sua radicalidade, sem medo de entregar a própria vida por essa causa.

Muitos profetas surgiram entre nós. Mas um profeta destacou-se em sua coerência e se fez modelo de inserção entre os pobres e de coragem de recriar a Igreja em uma fronteira de enfrentamentos políticos com os donos do poder econômico. Logo após a conclusão do Concílio, na longínqua missão de São Felix do Araguaia desembarcou um missionário espanhol. No sangue catalão palpitava o élan missionário claretiano e circulavam os ares da renovação conciliar. O missionário embrenhava-se no grande sertão e abraçava uma causa que viria transformar sua vida para sempre. O sacerdote se transforma em profeta radical, em nome da cruz e da ressurreição. A missão claretiana na selva mato-grossense reservava um futuro desafiante para Pedro Casaldáliga. O rio Araguaia escondia em sua mansidão e beleza margens violentas. As terras cada vez mais apropriadas pelo latifúndio eram dominadas pela morte e lavada em sangue. Os pobres posseiros e indígenas se tornavam empecilhos dessa dominação. A luta violenta entre os supostos donos e os desvalidos era mais que um drama local, mas expressão do regime ditatorial que amparava as elites e via na presença da Igreja uma subversão permanente. Não havia meio termo em um campo de guerra: ser contra ou favor das vítimas do capital agrícola? A figura franzina do catalão vai se tornando um gigante que ameaçava os poderosos. O missionário foi nomeado bispo por Paulo VI em 1971. Não fora um cochilo papal, mas uma política de nomeação coerente com as perspectivas abertas pelo Vaticano II. Ademais, uma congregação religiosa manifestamente comportada ofereceria, por certo, um bispo igualmente comportado. No entanto, o bispo Pedro tornou-se logo símbolo de uma inserção radical da Igreja junto aos pobres: de luta em favor dos oprimidos pelo latifúndio, de defesa das culturas indígenas e de inculturação pastoral e litúrgica naquelas condições locais.

Não tardaram as qualificações de bispo comunista, exótico e herético. As perseguições políticas foram constantes naquela década primeira de seu ministério. Processos de expulsão impetrados pela ditadura militar, calúnias, ameaças de morte e tentativas concretas de assassinato por parte dos poderes econômicos locais. Em 1976 morreu ao seu lado o Padre jesuíta, João Bosco Penido Burnier, quando defendiam juntos mulheres que eram torturadas em uma cadeia de Ribeirão Bonito. Afirmou mais tarde o matador de aluguel que, na verdade, o alvo era o bispo. E não faltaram perseguições dentro da Igreja: bispo suspeito de heterodoxia da parte de Congregações romanas. Como todo profeta, Pedro permaneceu coerente em sua missão junto aos pobres da Prelazia de São Félix. Não se intimidou com as ameaças políticas e nem com as reprimendas romanas. Permaneceu franzino e forte; poeta e pobre; místico e político; sacerdote e profeta. A radicalidade profética não suporta nem meios termos e nem dualismos. O profeta assume sem reservas o vigor do carisma que vem do Cristo morto e ressuscitado, do Jesus de Nazaré que viveu pobre com os pobres. No ponto mais extremo encontra a união mais radical entre Deus e o homem na carne concreta das pessoas, de modo especial daquele que sofrem. O renovador da Igreja assume o carisma conciliar que o lança para a identificação com os pobres e sofredores. No coração do Evangelho se encontra o coração da justiça: a vida dos pobres. O coração do Evangelho é feito de carne, do Verbo que assume as dores da humanidade e não de ideias e de doutrinas. Esses ensinamentos do Papa Francisco foram vivenciados por Pedro Casaldáliga de modo coerente e concreto.

Um grande profeta entre nós! Um mártir que escapou da morte física e se deixou morrer no seu testemunho até as últimas consequências. Santo sem metáforas no seu cotidiano atribulado e sereno. Grande e manso como as águas do grande Araguaia que o batizou com suas águas. Hoje um santo junto de Deus. A vida do bispo Pedro ensina a Igreja do Brasil, da América Latina e do mundo que é possível viver o Evangelho na sua simplicidade radical quando a cultura do consumo ensina o bem-estar individual como regra e promessa de felicidade. Ensina também que é possível ser profeta em uma estrutura eclesiástica estruturada sobre a ideia e a lógica do poder religioso; que é possível ser fiel à doutrina colocando antes de tudo e acima de tudo o Evangelho; que é possível ser sacerdote e ser profeta ao mesmo tempo; que é possível sofrer sem ser rancoroso e guardar mágoas.

Dom Pedro Casaldáliga viveu a Igreja em saída sem reservas no fim do mundo do Mato Grosso, no calor escaldante dos trópicos, na luta pela terra, na utopia do Reino de Deus. Seu corpo está agora semeado juntamente com os dos índios e dos mártires da terra. A vida o consumiu até o limite das possibilidades físicas, longe de sua terra natal, junto dos pobres, à margem dos poderes no meio da selva. A casa comum do Araguaia abriga os restos do profeta que defendeu seus povos e sua preservação, como dom de Deus para todos. A Igreja do Brasil guardará a memória de um profeta em tempos de totalitarismo que criminaliza todos os libertadores como inconvenientes a serem eliminados. Muitos bispos da geração atual não querem ser como Pedro. A igreja possui um clero de sacerdotes eficientes, mas com poucos profetas. Ser sacerdote profissional é, de fato, mais simples, mais fácil e mais legítimo dentro da estrutura eclesiástica e da tradição eclesial. Sair das posturas que afirmam e reproduzem a autorreferencialidade da Igreja é um desafio que exige conversão: conversão pastoral, conversão ecológica, conversão social, conversão pessoal. O Papa Francisco não cansa de repetir essa urgência para a Igreja de todo o mundo.

Pedro Casaldáliga será um representante de uma Igreja do passado? De uma era conciliar superada? De uma conjuntura política também passada? A memória do profeta sobreviverá pelas gerações? O magistério dos gestos e das palavras de Francisco diz que não. O povo saberá encontrar, certamente, os meios de preservá-la às gerações. A Igreja fez isso com os seus santos oficiais. O futuro dirá se Pedro será canonizado como o foi o politicamente suspeito Oscar Romero e como os que estão a caminho: dos pobres dom Helder e dom Luciano. Na verdade, ninguém poderá duvidar da autêntica santidade de São Pedro Casaldáliga, mesmo que nunca seja oficializada pela Igreja. Sua vida perfila a dos místicos, dos mártires e dos grandes padres da Igreja; seu ministério é testemunho da identificação com o Cristo pobre com os pobres e seu itinerário espiritual ensina a viver como Jesus viveu.

Ciberteologia quer marcar presença nessa data da passagem do grande bispo para o paraíso dos eleitos. Partiu da grande tribulação, foi lavado no sangue dos mártires da grande Amazônia, viveu plenamente até onde seu frágil corpo resistiu. Os textos dedicados a Pedro têm procedências e estilos diferentes. O primeiro texto é um testemunho ocular, palavras pronunciadas de cor pelo companheiro de anos nas estradas da vida de Pedro: o agostiniano Paulo Gabriel López Blanco. O texto testemunhal foi mantido em seu formato original, destoando do padrão técnico do artigo acadêmico; abre o dossiê como um belo frontispício, oferecendo um retrato fiel do bispo na ótica de quem viu, conviveu e testemunhou sua vida. O artigo seguinte brota igualmente de dois testemunhos de quem conviveu com Casaldáliga. Os dois Artigos seguintes se referem à espiritualidade do bispo pobre com os pobres, seguidor de Jesus Cristo. Três notas complementam o dossiê: uma primeira de cunho acadêmico resenha trabalhos sobre Dom Pedro e uma segunda mostra o eco ecumênico do prelado na voz poética do pastor luterano Roberto E. Zwetsch. Uma apresentação feita por José Oscar Beozzo para os Diários de Dom Pedro publicado na Espanha está alocada na seção Resenha. Uma terceira Nota convida a refletir sobre a conjuntura atual de pandemia. A seção Documentos resgata um documento de imenso valor histórico: a Carta escrita por Dom Pedro ao Papa João Paulo II em 22 de fevereiro de 1986. Leitura obrigatória! O dossiê cede espaço para Artigos afinados a seu foco: reflexões sobre a vida e ministério de Zilda Arns e sobre teologia ecológica.

Que a memória do bispo Pedro Casaldáliga anime a Igreja a sair de si mesma em busca do Reino e na defesa dos mais pobres.

 

João Décio Passos
Editor
 

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